Nelson Fonseca Neto
Resolver caminhando
Até que me deparei com a placa na garagem: "Não estacione. Garagem. Não sabe ler? Ga-ra-gem". Achei uma preciosidade
Quase oito da manhã. Sábado. Tempo nublado. Friozinho. Condições perfeitas para bater perna no centro da cidade.
Pouca gente nas calçadas. Muitas lojas ainda fechadas. Outras abrindo. Alguns lojistas com cara sonolenta. Outros já animados. O trânsito ainda não está infernal.
Meses atrás, a caminhada foi o primeiro degrau para abandonar o sedentarismo. Com as coisas entrando nos eixos, virou necessidade espiritual. O corpo ainda agradece, mas o preparo físico vem sendo aprimorado mais amiúde na academia. Caminhar tornou-se alegria gratuita.
“Solvitur ambulando” é expressão em latim que pode ser traduzida como “resolver caminhando”. Há quem prefira pensar na vida afundado em macia poltrona, no silêncio do claustro. Passei muitos anos encarando as coisas assim. Mudei de ideia com as caminhadas. Um dia ainda faço um apanhado das iluminações literárias que vão aparecendo conforme vou batendo perna.
Eu disse, algumas linhas atrás, que caminhar tornou-se alegria gratuita. Preciso explicar melhor esse ponto. Alegria gratuita, sim, mas não desprovida de método. Nas manhãs de sábado, por exemplo, o roteiro necessariamente contempla as ruas do centrão. Impossível fazer de outra forma.
Com o tempo, foram surgindo uns cacoetes nos passeios a pé. Tem vez em que eu me proponho a reparar nas calçadas. Devo parecer deveras melancólico olhando para o chão. Não é melancolia ou preocupação: estou catalogando o que meus olhos vão encontrando. Não deixa de ser assustador e irritante em muitos momentos.
Excrementos de animais, garrafas, latinhas, embalagem de salgadinho, caixa de remédio. Buracos rasos, buracos fundos, piso quebrado, estreitamentos absurdos, degraus aleatórios. Vou pensando: o ser humano é um prodígio em sua capacidade de adaptação. Era pra ter gente tropeçando o tempo inteiro.
Mas tem vez em que eu me proponho a reparar nas sobrelojas. Assaz estranho um grandalhão andando com ar de quem vive no mundo da lua. Meus olhos estão em busca de casas antigas. Minha imaginação vai reconstituindo o esplendor de muitas casas que hoje estão em precárias condições. A rua dr. Braguinha abriga alguns tesouros.
Observação e imaginação dão as mãos nessas horas. Tiro essas casas do cenário atual e as coloco na época em que foram construídas. Ponho famílias morando nelas. Vou criando uns enredos delirantes. Depois deixo de lado a imaginação e procuro algumas pessoas que sabem tudo da vida de Sorocaba e explicam quem morava na casa X. Um dia ainda escrevo a respeito dessa turma boa de memória e de papo.
Caminhar com método não significa estar fechado ao inusitado. Dia desses, eu estava numa travessa da Nogueira Padilha. Uma rua que não estava chamando minha atenção. Até que me deparei com a placa na garagem: “Não estacione. Garagem. Não sabe ler? Ga-ra-gem”. Achei uma preciosidade. Uma placa dessas deve ter sua razão de ser. Quem mora naquela casa deve ter passado por poucas e boas com folgados obstruindo a entrada. Aí a imaginação vai longe, criando situações grotescas.
Falando em Nogueira Padilha, um comentário meio solto: o hábito de caminhar transformou as ruas íngremes de outrora em subidas agradáveis. Devo confessar aqui: tenho sido um caçador de subidas mais pesadas. Passei infância, adolescência e boa parte da vida adulta considerando a Nogueira Padilha um percurso bastante desafiador.
Agora, não. E dá um certo orgulho besta constatar uma coisa dessas. A gente envelhece e vai ficando alegrinho por qualquer bobagem. Ainda bem.