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Nelson Fonseca Neto

Uma vitória

Sou canhoto, e isso só piora as coisas na hora de escrever com caneta tinteiro. Outros canhotos já falaram do sofrimento

28 de Setembro de 2023 às 23:01
Cruzeiro do Sul [email protected]
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Dizem que a gente vai ficando mais chato com a idade. Mais implicante, mais metódico, mais sistemático. É feio advogar em causa própria, mas acho que comigo vem se dando o contrário.

Acho que eu já disse aqui que a vontade de escrever apareceu para mim logo que completei vinte anos. Até então eu me contentava com a leitura. Impossível dizer o que me motivou. Só sei que comecei a escrever uns contos meio violentos. As frases eram telegráficas. Eu era econômico no uso dos adjetivos e advérbios.

Não precisa ser muito astuto para notar que eu venerava Graciliano Ramos e Dalton Trevisan naquela época. Continuo reconhecendo a grandeza deles, só abri mão do fervor maníaco. Ainda hoje tento não escrever frases muito longas. Tento me policiar na hora de recorrer aos adjetivos e advérbios.

Mas voltemos ao momento em que eu ia escrevendo os primeiros contos. Eu era um jovem meio pernóstico. Comprei um tipo de papel todo cheio de firula. Eram folhas mais grossas, de um amarelo sutil. Custavam os olhos da cara.

A caneta é um capítulo digno de nota. Eu me recusava a escrever os contos se não fosse com caneta tinteiro. Meu pai tem algumas muito boas. A escrita é suave. Impossível comparar com os resultados de uma esferográfica. Não é preciosismo constatar uma coisa dessas.

Tudo estaria bem se eu não fosse um cara desastrado. A pessoa familiarizada com o mundo das canetas tinteiros sabe que abastecer a caneta com tinta requer zelo e jeito. Nunca consegui fazer uma coisa dessas sem resultados desastrosos. Eu tinha de encarar a tarefa com um rolo de papel higiênico próximo.

Sou canhoto, e isso só piora as coisas na hora de escrever com caneta tinteiro. Outros canhotos já falaram do seu sofrimento. A gente vai escrevendo e tem de tomar cuidado para não borrar a frase mais recente. É por isso que os meus contos daquela época parecem ter sido escritos por alguém escondido num bueiro. Coisa de canhoto desastrado.

Hoje eu escrevo em qualquer lugar. Não implico com barulho. Agora mesmo estou escrevendo com o computador no sofá. A Patrícia está ao meu lado fazendo as tarefas dela no outro computador. O João Pedro já está dormindo. A TV mostra o jogo Fluminense X Inter. Interrompi uma frase para ver um gol do Fluminense. Depois voltei ao texto. E o mundo não acabou por causa disso.

Na época dos contos escritos com caneta tinteiro, o mundo teria acabado. Ninguém podia tossir perto do gênio da literatura. Se a televisão estivesse ligada, meus ouvidos sangrariam. Os barulhos da rua quebravam o ritmo do prosador que galvanizaria a literatura brasileira. Ainda bem que a gente envelhece.

Naquele tempo já havia computador. Ai de quem sugerisse que eu usasse o dito cujo. Certamente essa pessoa ouviria a ladainha que enalteceria a pureza do processo criativo. Olhando para aqueles meses com os olhos de agora, agradeço ter ficado na caneta tinteiro. Poderia ser pior. E se eu resolvesse escrever a prosa maravilhosa numa máquina de escrever, daquelas duras e barulhentas? Fico pensando no tamanho do estrago.

Abandonei os rituais constrangedores. Faz tempo que não escrevo contos. Abracei a crônica. Na hora de escrever, tornei-me menos chato. Não é pouca coisa. Agora peço licença para ver o jogão do Fluminense. Até mais.

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