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Nelson Fonseca Neto

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O Neto sem o Alexandre olharia para os clássicos ao redor e ofereceria ao leitor uma pepita de lucidez

22 de Setembro de 2023 às 23:56
Cruzeiro do Sul [email protected]
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Olho para os livros ao redor. Muitos deles são sérios, imponentes, escritos pelos gênios da humanidade. Suas emanações deveriam me tornar um cronista sério, grave, versado nos grandes temas. Respiro fundo, fecho os olhos, puxo na memória trechos desses livros que possam me socorrer. É que eu vim preparado para escrever um texto lapidar, daqueles que ajudam o leitor a atravessar a dura vida. Queria que o meu texto fosse uma potente lanterna.

Só que, antes de vir ao escritório, resolvi pegar um café na cozinha. O apartamento está silencioso, a Patrícia saiu, o João Pedro ainda está dormindo. Na cozinha, o passado resolve vir na forma de galhofa. Minha cabeça, do nada, é tomada pela musiquinha de abertura da novela “A viagem”, sucesso da Globo nos anos 90.

Não ousarei aborrecer o leitor com detalhes do enredo daquela novela, mas alguma coisa eu preciso dizer, para que as peças não fiquem soltas. O que mais me chamava a atenção na época era o personagem Alexandre (Guilherme Fontes). Enquanto ele era vivo, aprontava horrores. Lá pelas tantas, ele morre, mas seu espírito insiste em ficar por aqui. Ele passa boa parte da trama azucrinando os personagens bonzinhos.

Óbvio que o Alexandre era invisível para aquelas pessoas. Só nós, os milhões de espectadores, o víamos. Dava aflição acompanhar aquilo. É que o Alexandre aparecia nas horas inadequadas. Lá estava a família reunida desfrutando um farto desjejum, as conversas eram leves, sorridentes, carinhosas, evoluídas. Aí o Alexandre chegava perto, por exemplo, do personagem do Maurício Mattar. Pronto, o estrago estava feito. O Maurício Mattar passava a ficar arisco, grosseiro, truculento, inconveniente, com cara de quem não estava consumindo café com leite na xícara, e sim querosene.

Bom, chega de resumir a novela. Para quem não assistiu e tem curiosidade: as coisas terminam bem, e o Alexandre para de aprontar. Mas voltemos à parte em que eu estava na cozinha para pegar café. Veio a musiquinha de abertura da novela, algumas cenas voltaram nítidas. Como é de hábito, pensamentos bizarros vieram de carona. Divido um deles com o leitor, já que estou aqui para passar a insofismável vergonha de cada dia: somos bons, mas às vezes o Alexandre aparece.

Não acontece sempre, importante deixar registrado. Tem dia em que eu vou encadeando uma boa sequência de nobres ações. Paciência, tolerância, gentileza, suavidade. Eu vou me sentindo a materialização daquilo que a humanidade tem de melhor. Em dias assim, vou pensando umas coisas: Como sou virtuoso! Como fiquei tanto tempo sem saborear dos frutos da bondade? Agora ninguém me segura!

Aí o Alexandre surge para atormentar. Costuma acontecer no pico da euforia. Naqueles momentos, inevitáveis, em que o sujeito satisfeito decide que o mundo merece ouvir sua linda história de superação. Enfim, naqueles momentos em que o sujeito está prestes a criar um perfil no Instagram para influenciar o maior número possível de seguidores. (Eu ia dizer “azucrinar”, mas falei para o Alexandre: xô, xô!)

O Alexandre que às vezes surge faz com que o Neto doce e simpático se torne irônico, implicante, criador de apelidos. O Neto sem o Alexandre olharia para os clássicos ao redor e ofereceria ao leitor uma pepita de lucidez, um diamante de erudição. Infelizmente, o Alexandre marca presença, e aí você sabe bem como é.

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