Nelson Fonseca Neto
O que conta
Eu sei, mas fico pensando nas árvores derrubadas por esses empreendimentos. Corta o coração da gente
Aconteceu na segunda-feira de manhã, quando eu estava levando o João Pedro à escola. Não é um ritual, longe disso, mas costumo pensar no assunto da crônica da semana nas manhãs de segunda-feira. Acontece sem querer. Vai ver que é alguma parte mais profunda da minha mente querendo bancar a responsável. A velha história: começar a semana de forma ordeira e cidadã.
Enquanto o João Pedro comia a sacrossanta banana da manhã no banco de trás, o rádio tocava umas propagandas. Eis que surge a voz toda cheia de firula de um homem divulgando o lançamento de um empreendimento num bairro qualquer.
Venho tentando ser menos irritadiço ao longo dos últimos anos. Tenho obtido conquistas dignas de nota em vários quesitos. Qualquer dia desses, falo melhor a respeito. Mas ainda há um longo caminho a trilhar. Um longo caminho repleto de obstáculos, e voz de canastrão é, seguramente, um desses obstáculos.
Sei que a crônica pode ser a respeito de qualquer coisa, mas seria forçar a barra achar que algo de útil pudesse sair das reflexões em torno de uma voz irritante no rádio. Nem Rubem Braga daria conta do recado. Então a tal voz azucrinadora que eu ouvi na manhã de segunda-feira foi parar bem no fundo da gaveta da memória.
As horas se passaram até chegar o momento em que eu comia uma goiaba no final da tarde. Isso ainda na segunda-feira. Era uma goiaba vermelha, perfumada, uma maravilha. Parei para pensar: nem sempre eu fui tão devorador de fruta como sou hoje. Quando eu era criança, eu até que comia bem. Depois, já adulto jovem, dei uma guinada e suprimi as frutas da minha vida. Não foi algo deliberado. Simplesmente aconteceu.
Então, de uns meses pra cá, as frutas passaram a ter um peso grande na minha alimentação. Começou como obrigação, devo reconhecer, mas converteu-se em prazer. Hoje eu vou à quitanda e fico empolgado. Parece pouco, mas pensem que passei os últimos anos fazendo graça e dizendo que gostaria ter uma árvore de Nutella no quintal de casa.
Junto com a recente paixão pelas frutas veio a consciência ecológica mais aguda. Parece estranho dizer uma coisa dessas neste espaço, uma vez que, menos de um mês atrás, eu escrevi a apologia da cidade. Não tem problema. Faz tempo que abri mão da coerência.
Isso tudo para dizer que, antes, eu mal reparava numa árvore frutífera. Não me orgulho disso. Muito pelo contrário. Minha infância foi marcada por três árvores maravilhosas: uma mangueira, uma goiabeira e uma jabuticabeira. É uma vergonha, com um passado desses, bancar o soberbo e sair fazendo graça contra os que gostam de fruta. Tive essa fase besta, mas passou. Ainda bem.
Hoje, e sei que corro o risco de soar hiperbólico e piegas, considero notáveis as pessoas que plantam árvores frutíferas. É o típico gesto humilde que comove. Comove pela gratuidade, comove pela crença no futuro, comove pela generosidade. Há, sim, um quê de santidade no gesto de plantar uma árvore.
Aí eu volto à voz que ouvi no rádio, na segunda-feira. Voz na propaganda de empreendimento imobiliário. Eu sei que a fila anda, que o progresso urra e que a roda da economia deve girar. Eu sei, mas fico pensando nas árvores derrubadas por esses empreendimentos. Corta o coração da gente.
Dia desses, vi como a Patrícia ficou abalada com o corte de uma árvore perto de casa. Abalada de verdade, acreditem. Pensei: casei com uma mulher que tem o coração no lado certo do peito.