Nelson Fonseca Neto
E assim tropeça a humanidade
E tem gente que gosta mais de abrir a janela e ver a vida alheia desfilando logo ali, em dezenas de janelas
Uma confissão para vocês: eu queria ser mais lírico, mais sutil, mais delicado com as palavras. Meu desejo vem principalmente depois que releio umas crônicas do Rubem Braga, o maior de todos. Para escrever daquele jeito o sujeito precisa ter talento literário e sabedoria. Ler suas crônicas é como ver o Messi jogando. Sem firulas, simplicidade, parece fácil. Vai lá tentar fazer igual.
Faço a confissão porque eu estava pronto para escrever uma crônica a partir das janelas iluminadas que consigo ver daqui do nosso apartamento. É chover no molhado dizer que o encanto de um apartamento está na vista que ele oferece. Há quem prefira morar num apartamento com a vista desimpedida. E tem gente que gosta mais de abrir a janela e ver a vida alheia desfilando logo ali, em dezenas de janelas.
Acho que pertenço ao segundo grupo. Sempre me fascinou o brilho das televisões nos apartamentos. Fico imaginando a vida daquelas pessoas das janelas. Não é bisbilhotice. Não fico muito tempo olhando. Não recorro a binóculos ou lunetas. Bastam alguns instantes para eu criar os enredos. Não deixa de ser uma bela terapia.
Eu estava empolgado com a perspectiva de trazer para este espaço algumas das histórias que fui inventando. Não seria nada de escabroso. Elas seriam mais para graciosas. Uma ou outra seria mais triste, mas nada de muito trágico. As coisas iam nessa toada mais puxada pro lirismo, pra delicadeza, quando me deparei com uma notícia num desses portais de imprensa na internet.
Antes de avançar: conheço muita gente que leu “O médico e o monstro” (Robert Louis Stevenson) e disse que a história mostrava como o autor tinha uma imaginação hipertrofiada. Discordo: ao colocar o embate da bondade com a maldade na mesma pessoa, Stevenson revelou uma brilhante capacidade de observação. A história de Jekyll e Hyde ilustra maravilhosamente que o ser humano é abismo. Isso tudo para dizer que, ao ler a notícia na internet, o Neto lírico foi sufocado pelo Neto sarcástico. Sobre o que era a notícia?
(Prometo que será a última interrupção: às vezes sou abordado por leitores que dizem preferir os meus textos sarcásticos. Ver o circo pegar fogo é uma das delícias da vida.)
A notícia: Elon Musk e Marck Zuckerberg, dois dos bilionários mais venerados atualmente, estão pensando, a sério, em lutar num ringue. Não preciso mentir para vocês: num primeiro momento, pensei que tinha lido errado. Cliquei no título. Vai ver é pegadinha. Não era. Os marmanjos bilionários querem entrar numa espécie de rinha.
Certa vez alguém disse que geografia é destino. Sim, é. Assim como o momento histórico. Como ser lírico tendo de lidar com uma rinha entre bilionários? Não tem como. Aí o Neto sarcástico foi criando detalhes sobre a tal luta. Detalhes que eram consequência da minha imaginação sem freio. Mas aí achei melhor parar. Os leitores não merecem ser expostos a esse tipo de desvario. Basta que duas das figuras mais influentes do mundo estejam preocupados com uma briga no ringue. Basta a realidade.
Essas duas figuras são referências para muito gente. Sei do que estou falando, acreditem. Dá um pouco de medo. Um pouco, não; muito. Mas tratar disso está além da minha alçada, e eu não quero chegar perto do final deste texto me lamuriando.
Agora, se vocês me dão licença, vou xeretar na janela para ver se recupero um pouco do meu apreço pela humanidade.