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Nelson Fonseca Neto

De olhos bem fechados

Há quem diga que escancarar todos os nossos pensamentos, emoções e sentimentos é libertador. Vai ser tonto assim lá longe

13 de Julho de 2023 às 23:01
Cruzeiro do Sul [email protected]
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Numa das passagens do estupendo “Minha vida de menina”, Helena Morley escreveu que, para matar o tédio num percurso longo a cavalo, resolveu “construir castelos”. Enquanto o sol castigava, Helena imaginou como seria sua vida caso se tornasse repentinamente rica. Isso é “construir castelos”. É permitir que a imaginação entre para nos ajudar a atravessar a modorra da existência.

Encaremos os fatos: nossa época é despudorada. As redes sociais são tomadas por confissões e por imagens da intimidade. O que se discute na alcova é iluminado por holofotes potentes. Tudo deve ser debatido. Tudo deve ser confessado. Tudo pode servir de material para conselhos dos abelhudos. Há quem diga que escancarar todos os nossos pensamentos, emoções e sentimentos é libertador. Vai ser tonto assim lá longe.

Aí entra o lado meio trapaceiro do ser humano, e isso é bom. Mesmo a mais indiscreta das pessoas retém alguns tesouros íntimos. Está para nascer a pessoa que conta numa boa todos os sonhos de suas noites. E está para nascer a pessoa que revela todos os seus castelos construídos.

Há uma situação que pode ilustrar o que estamos falando. Um casal está na sala. Lá pelas tantas, ela olha para um ponto da mesinha. Ele pergunta: em que você está pensando? Aí a coisa ganha feitio de cara ou coroa. Cinquenta por cento de chance de acerto. Ou ela fala a verdade, pois está pensando em algo prosaico; ou ela mente, pois está pensando em algo que é só dela. Quando alguém pergunta uma coisa dessas, somos rápidos no gatilho na hora da resposta. E quase sempre mentimos. Problema de caráter? Não. Tática de sobrevivência.

(Deveria haver uma lei proibindo a pergunta “Em que você está pensando?”. Pensando bem, melhor não. Eu vivo atormentando a Patrícia com essa pergunta.)

Não é necessário ser um gênio para afirmar que cada um ergue seus castelos à sua maneira. O básico do básico: construir castelos é viver uma outra viva. É por isso que a esmagadora maioria das pessoas, em algum momento, tem devaneios de como é ser um milionário. Um bom gatilho: a época da Mega da virada.

Agora, vejam só que coisa curiosa: e os devaneios de um Moreira Salles? A família é bilionária. O dinheiro é uma abstração. Essas coisas. Um Moreira Salles não pensa em como seria a sua vida caso fosse muito rico. Ele já é muito rico. Ele abre o olho e vê o sininho ao lado da cama. O sininho serve para chamar o mordomo. (Não sei se isso ainda existe, ou se já existiu; mas fiquemos com a força da imagem.)

Algo semelhante acontece com os astros e estrelas do esporte e da música. Quais são os castelos construídos pelo Messi? Quais são os castelos construídos pelo Bruce Springsteen? Quais são os castelos construídos pela Maria Bethânia?

Mas nem só de riqueza vive o homem. Às vezes, os castelos que construímos são macabros. São vinganças arquitetadas depois de uma desfeita que nos atinge. O castelo da vingança pode ser monumental ou um reles castelinho. Depende da desfeita. Depende da pessoa que ergue o castelo. A vingança imaginada pode ser sangrenta ou pode ser cômica. O que importa é que ela se dá com nitidez em nossas cabeças.

E depois, aliviados, tocamos nossas vidas de cidadãos cumpridores do dever.

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