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Nelson Fonseca Neto

Olhos bem abertos

Eu comeria uns lanches turbinados nos botecos. Sorte da Patrícia e do João Pedro que o lance do repórter policial é devaneio

06 de Julho de 2023 às 23:01
Cruzeiro do Sul [email protected]
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Alguns dirão que estou simplificando demais, mas não tem problema. O que eu quero dizer é o seguinte: na literatura, há escritores introvertidos e há escritores extrovertidos. Saber diferenciar uns e outros é fundamental.

Introvertidos: escritores que olham prioritariamente para os complexos movimentos da alma. Extrovertidos: escritores que se deliciam com aquilo que desfila ao seu redor. Importante dizer que não são categorias puras. Há várias páginas de Clarice Lispector que mostram como ela, um clássico da introversão, sabe apreender o que passa diante de seus olhos. Poderíamos mencionar, com os sinais trocados, os contos de João Antonio.

E agora eu arrisco contrariar alguns leitores. Não é a minha vontade. É apenas uma questão de gosto. É o seguinte: meu coração bate mais forte pelos extrovertidos. Sempre foi assim? Nem sempre. Eu era um leitor mais sorumbático na juventude. Depois passou. Não tem explicação definitiva.

Ser cronista interfere? Pode ser. Mas dá para fazer crônicas mais introspectivas. Não é muito a minha praia, mas dá para fazer. Mas mesmo o mais introspectivo dos sujeitos, ao escrever regularmente para o jornal, precisa estar com os olhos bem, bem abertos. Há um mundo fascinante a ser desbravado logo ali na esquina.

Ser pai de criança pequena interfere? Não sei como se dá com outras pessoas, mas no meu caso interfere muito. Interfere muito, e é uma sorte danada. Nestes dias de férias escolares, a gente sai bater perna com o João Pedro por aí. É uma farra ir com ele à padaria para comer um pão de queijo ou um queijo quente na chapa.

Escolhemos lugares e horários movimentados. Nosso filhinho adora esses cenários. Tudo é farra para uma criança de 4 anos. Cronista bom tem que ter essa pegada de se deslumbrar com o cotidiano. Há um mundo fascinante a ser desbravado na padaria perto de casa.

O mundo fascinante a ser desbravado não é a mesma coisa que mundo perfeito. O mundo fascinante comporta o grotesco, o chocante, aquilo que a gente não encontra no aconchego do lar. Por isso acho fundamental bater perna por aí. Eu sou um cara de classe média, professor, essas coisas. Eu não posso ficar apenas zanzando por shoppings e livrarias. Ou ficar apenas no fondue da varanda gourmet.

De vez em quando eu sou tomado por uns pensamentos meio bestas. Um deles: como eu seria se vivesse em outra época? Sei lá, numa época em que os jornais impressos vendiam horrores. Eu não seria o crítico literário. Eu seria o repórter policial. Eu viraria a cidade de cabeça pra baixo em busca das histórias que realmente importam. Eu teria uns horários malucos de trabalho. Eu comeria uns lanches turbinados nos botecos. Sorte da Patrícia e do João Pedro que o lance do repórter policial é devaneio.

Ora, o repórter policial é um extrovertido. Ele vai atrás das coisas. Ele observa atentamente. Ele pouco pensa em si enquanto trabalha. Ele conhece gente. Ele conhece a cidade como ninguém. Bela maneira de atravessar a existência, não?

Uma recomendação de leitura para os que se inclinam para os extrovertidos: “Contos da Broadway”, de Damon Runyon. Runyon, nas primeiras décadas do século 20, foi um repórter que teve contato com tudo quanto é tipo de gente e de situação em Nova York. Seus contos trazem a tarimba do jornalista. É um grande autor. Ver bem a vida é viver bem a vida.

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