Nelson Fonseca Neto
Quem quer dinheiro? (conto final)
Consegue receber a bolada sem dar bandeira. Passa três semanas tocando uma rotina sem qualquer traço de extravagância

Como retratar a riqueza súbita dos contos de fadas? No século 19 e parte do século 20: a herança de um tio solteirão afastado. No século 21: Mega Sena ou site de apostas. Seria incongruente pensar em Jonas, nosso protagonista, apostando em escanteios, laterais ou cartões vermelhos. Poeta, minimalista, erudito, ele é da velha guarda. Ficou rico com a Mega Sena.
60 milhões de reais na conta. Consegue receber a bolada sem dar bandeira. Passa três semanas tocando uma rotina sem qualquer traço de extravagância. Finalmente decide sair do cargo que ocupa numa repartição pública da cidade. Aos colegas que estranham a decisão, inventa a história: seguir a vocação e investir na bolsa de valores. Ninguém duvida. Jonas é um esquisitão mesmo.
Esquisitão e mentiroso. Ficar horas a fio diante do computador, acompanhando minúsculas variações nas cotações seria uma punição para ele. Sempre considerou a bolsa de valores um cassino mal e porcamente disfarçado. Mas alguma história ele precisa inventar. As pessoas acreditam. Baita sorte.
Para um cara meio espartano como Jonas, 60 milhões garantem a tranquilidade de várias gerações. Como Jonas não pretende ter filhos, o prêmio se torna indizivelmente grande. Jonas não possui alma empreendedora, não queima neurônios imaginando as formas de multiplicar o dinheiro. Faz uma conta das mais elementares. Imagina os 60 milhões aplicados na poupança. Faz uma projeção: morrerá aos 80 anos. Ou seja: daqui a 46 anos. Transforma os anos em meses. Projeta o valor mensal de que precisa para viver confortavelmente. Constata o óbvio: o dinheiro dá e sobra. E sobra muito.
O que fazer com a sobra? Descarta a filantropia tradicional. Seria rapidamente reconhecido. Teria de lidar com festinhas, eventos e afins. Teria de participar de comitês. Teria de aparecer sorridente nas fotos. Nada contra a filantropia em si. Tudo contra o entorno da filantropia.
Promover festivais e concursos literários? Impossível. Mal da conta das reuniões das quais participa com alguns outros poetas de sua cidade. Coisa de dez anos atrás, foi a Paraty, por conta da FLIP. Ficou horrorizado com o clima de oba-oba ali. Achou insuportáveis as apresentações e as tietagens. Aquilo tudo reforçou sua convicção: literatura não é farra do boi.
Somos obrigados a reconhecer, a partir daqui, que algum fio se soltou na cabeça de Jonas. Usa cartão de débito e PIX para as despesas prosaicas: comida, aluguel (era contra a casa própria), roupas, livros, serviços de streaming. Além disso, recorria mensalmente a uma quantidade absurda de dinheiro em espécie. E é aqui que a cuíca ronca forte.
Um dos armários de Jonas era tomado por cédulas de 200 reais. Montinhos impecáveis, cheirosos, alinhados. O leitor desatento pensará: Jonas foi tomado pelo fetiche do dinheiro, febre exemplarmente ilustrada pela figura do Tio Patinhas. Se pensou assim, o leitor errou feio. O leitor atento pensará: Jonas transforma a riqueza em esporte, digamos, poético. E assim as coisas se dão com Jonas.
Jonas passa a perambular pelos mais diferentes pontos da cidade. Lugares de abastança e lugares precários. Shopping center, boteco, loja de 1,99, loja de grife, restaurante da moda, zoológico, padarias, praças, igrejas, templos, livrarias, bibliotecas. Uma farra do passeador. Jonas deixa, sempre que pode, algumas cédulas que imploram para ser encontradas. Uma fresta de banco, um suporte de guardanapos, um livro qualquer, a junção entre o pires e a xícara de café. Jonas mostra imensa criatividade na hora de colocar as cédulas de 200 reais nesses lugares. Seu prazer maior é ver o espanto do sortudo que se depara com uma dessas cédulas.
E assim Jonas, nosso poeta, vai tocando gostosamente a existência.