Nelson Fonseca Neto
O urso passeador
Eu realmente acredito que tudo piorou quando houve o casamento entre câmeras de celular e redes sociais
Transformei-me num passeador depois de velho. Passeio: percorrer a cidade, a pé ou de carro, sem objetivo definido. Prazer ao ver as coisas e as pessoas. Sorte grande: a Patrícia e o João Pedro também são passeadores fanáticos. O João Pedro, nas tardes modorrentas de domingo, pede, empolgado, para passear de carro. E assim uma criança salva o dia mais aborrecido da semana.
Passear é meditar. Dia desses, com o João Pedro no carro, passei na frente de casas que foram importantes para a minha infância e adolescência. Percorremos Santa Rosália, Vergueiro e Centro. As tais casas envelheceram mal.
Sou um urso de apartamento. Desde os dois anos de idade moro em apartamento. Lá se vão 43 anos nessa brincadeira. Isso molda a visão de mundo do sujeito. Onde moro hoje é o terceiro apartamento da minha vida. O segundo é onde meus pais moram ainda hoje. O primeiro está ali, firme e forte, na esquina da Penha com a Benedito Pires. Melhor dizendo: o prédio está firme e forte. Não sei como está o apartamento. Não sou bisbilhoteiro.
Sofre mais quem tem suas memórias ancoradas em casas de rua. O crescimento feroz dos condomínios fechados transforma muitas dessas casas em clínicas. Num processo desses, a construção tende a ser desfigurada. Sem contar que pode ocorrer a demolição para a construção de um prédio com varanda gourmet. Também podemos ter a degradação do bairro. A casa da infância vira uma biqueira.
Alguns leitores já notaram que tenho insistido na tecla do envelhecimento ultimamente. Estou de acordo. Envelhecimento e memória. Acho que não tem como ser de outra forma. Não é à toa que considero os últimos romances do Eça de Queirós obras-primas inquestionáveis. Eu me identifico com aqueles personagens excêntricos. Fradique Mendes e Gonçalo Ramires são sábios, no fim das contas.
Envelhecimento, memória e resmungos. Resmungo contra algumas coisas do tempo presente. Mente quem tem mais de quarenta anos e diz ser antenado com os tempos que correm. A verdade é que todos nós temos uma pátria temporal. É o espaço-lugar no qual nos sentimos mais à vontade. O meu é o final dos anos 80 e início dos anos 90.
Outro dia eu conversava com a Patrícia sobre isso. Fui categórico: alguma entidade sobrenatural deveria, no início dos anos 90, ter apertado o botão de “pause” da humanidade. Mais ou menos assim: o tempo continuaria correndo, mas as firulas tecnológicas parariam ali. Já estaria de bom tamanho, afinal, naquela época, já tínhamos ar-condicionado, TV a cabo, telefone sem fio, fax, antibiótico, aparelho de celular que apenas fazia chamadas, enciclopédia em CD-ROM.
Um admirável mundo retrô sem redes sociais, influencers, sites de aposta, aplicativos bestas. Eu realmente acredito que tudo piorou quando houve o casamento entre câmeras de celular e redes sociais. É só parar para pensar. Um mundo sem dancinhas, sem poses sensuais, sem check-in em hospitais. Seria um mundo menos tolo.
Só que eu sou um antiquado manso. Tenho minhas convicções, e não as escondo. Choro minhas pitangas de quando em quando. Não tento mudar ninguém. Sempre acharei ostentações de influencers como a síntese da imbecilidade. Saio correndo dos vídeos com “cinco passos para você se tornar feliz”. Mas fico nisso.
Eis o que é ser um urso manso de apartamento.