Nelson Fonseca Neto
F. (conto)
As mesmas pessoas que diziam que eu seria jogador profissional sentiam prazer na hora de tratar do meu fracasso
Alguém já disse o seguinte: pior que não ter talento algum é ter um pouco de talento. O sujeito sem talento se conforma rapidamente com a vida. O que tem um pouco de talento passa por um período de glória antes de encarar a amarga realidade.
O poeta ligeiramente talentoso, num golpe de sorte, pode escrever um soneto passável. Mas fica naquilo. E a decepção é das mais duras. Em algum momento, o poeta ligeiramente talentoso chegou ao topo da montanha. Despencou e nunca mais conseguirá subir até lá.
Não é diferente no mundo dos esportes. Eu, por exemplo, no futebol, era o craque do clube e da escola. Isso aconteceu dos doze aos dezesseis anos. Na escola onde eu estudava, todo ano havia um campeonato de futsal entre as classes do ensino médio. Coisa mais manjada: minha classe ganhava sempre. Eu levava o time nas costas. Todos ficavam impressionados com a minha performance na quadra.
A mesma coisa no clube. Só que ali era futebol de campo. Quem me via jogar dizia que eu deveria participar de uma peneira num clube grande; que eu deveria levar a sério a ideia de ser jogador profissional de futebol. No começo eu achava que era exagero. Depois fui aceitando o cenário que estava destinado a mim.
Não mencionarei o clube no qual tentei dar meus primeiros passos como jogador. Dei sorte na tal da peneira. Foi mesmo uma questão de sorte. Nesse tipo de processo seletivo, o moleque tem uns cinco minutos para mostrar que tem algum talento. É bom lembrar que essas coisas aconteceram comigo no começo dos anos 90. Sei que muita coisa mudou de lá para cá.
Hoje o moleque, se é bom de bola, já é acompanhado por um empresário desde os seus nove, dez anos de idade. No meu tempo as coisas eram mais amadoras. Quando passei na peneira, imaginei que as coisas iriam correr velozmente. Tive de morar nas instalações do clube de futebol. Foi um baque. Meu time era um dos maiores do país, mas as instalações eram precárias. As paredes eram úmidas. A comida era feita de qualquer jeito. Mas o pior era dividir o quarto com cinco outras pessoas. Sou filho único. Em casa, meu quarto era repleto de conforto. Eu estava acostumado a um tratamento respeitoso. No clube, parecia que eu tinha entrado numa colônia penal. O sadismo era a tônica. Seria exaustivo tratar dos exemplos.
Não sou de esconder minhas falhas. Implico com quem sempre tem uma desculpa para justificar o fracasso. Dito isso, tenho de reconhecer que o ambiente no clube de futebol representou um abalo emocional. Corpo e mente estão conectados, como qualquer coach fuleiro sabe. Assim, nos treinos, eu fui me apagando. Sem contar que dezenas de moleques jogavam bem melhor que eu. Bem melhor mesmo. Ali eu acordei para a vida.
Esse acordar para a vida é curioso. Tem gente que demora anos para resolver o processo. Tem gente que resolve rapidamente. Exemplo do primeiro grupo: a pessoa, mesmo com pouco talento, arrasta anos de carreira em times fuleiros, ganhando mal, passando por situações constrangedoras, sempre esperando o golpe de sorte na próxima curva. Eu, por sorte, acordei para a vida rapidamente. Larguei tudo em poucos meses. Recreação é uma coisa, vida profissional é outra, completamente diferente.
Não vou dizer que foi fácil. Bateu aquela vergonha nos primeiros anos. Eu sabia que tiravam sarro da minha cara. As mesmas pessoas que diziam que eu seria jogador profissional sentiam prazer na hora de tratar do meu fracasso. A vida tem dessas coisas mesmo. Mas o tempo se encarregou de trazer a paz. Continuo batendo a minha bola. Ainda hoje faço boas jogadas. Tem coisa que nunca sai da gente.