Nelson Fonseca Neto
Enciclopédico
Lembro muito bem que a Mirador era considerada uma Barsa mais robusta
Quando eu era criança, mais para o final dos anos 80, um evento sacudiu a minha casa: a chegada da enciclopédia Mirador. Eu já estava familiarizado com os montes de livros: um dos quartos do nosso apartamento era uma biblioteca. A questão central era o que a enciclopédia representava: a síntese do que a humanidade produziu de melhor. Soa como otimismo do século XIX, mas era assim que eu encarava as coisas.
Lembro muito bem que a Mirador era considerada uma Barsa mais robusta. Não tínhamos a Barsa, mas tive como verificar se a Mirador era melhor porque na biblioteca da escola onde eu estudava havia uma Barsa logo na entrada. Bastou uma tarde para eu constatar que a minha família não foi vítima de propaganda enganosa. Passei a olhar para aqueles vinte volumes parrudos enfileirados lá em casa com mais veneração ainda.
Sem saber direito o que foi o Renascimento, eu era uma criança com inclinações renascentistas. Eu gostava de química. (Naquela época as lojas de brinquedo vendiam kits para o “químico júnior”. Não sei como é hoje. Espero que a tradição não tenha se perdido.) Eu gostava de matemática. Eu gostava de biologia. (Eu adorava fuçar nos atlas de anatomia.) Eu gostava de história. Eu gostava de geografia. (Esse meu interesse merece um novo parágrafo.)
Junto com a Mirador vieram alguns volumes com mapas. Mas antes dos mapas eu preciso falar a respeito de globos terrestres. Acredito que cada um de nós tenha um ou mais objetos de paixão. Objetos que estão vinculados à infância mais intensa. Pode ser aquele livrinho com a história do macaquinho. Pode ser a bola de capotão. Pode ser um monte de coisa. No meu caso, eram globos terrestres. O primeiro deles ficava na mesa do escritório do meu avô Nelson. Era um globo pequenininho dentro de um cubo de cristal. Eu achava aquilo a coisa mais linda do mundo. Depois meus pais deram um globo maior. Eu ficava horas ali vendo os países coloridos e aqueles nomes estranhos. Depois vieram os mapas.
Tinha de tudo um pouco naqueles mapas que vieram com a enciclopédia Mirador. Eu gostava dos mais abrangentes e dos mais detalhados. Lembro bem de uns mapas que mostravam o interior da França. Era óbvio que muitas cidades ali deviam ser minúsculas. E assim eu passava uma parte do tempo livre.
O temperamento de quem ama uma enciclopédia é o de um generalista. Estudar a Primeira Guerra Mundial e compreender como funcionam os rins. Há quem veja isso como sinal de superficialidade. Eu vejo como uma saudável curiosidade. Conheço gente que é capaz de destrinchar todas as frases de Machado de Assis e, ao mesmo tempo, ignorar quem foi Tchékhov.
Com todo respeito, acho lamentável. Desnecessário dizer que jogo ferozmente no time dos generalistas. Temperamento? Vocação? Influência do meio? Pode ser, mas a Mirador teve um papel crucial na minha formação.
Alguém disse que geografia é destino. Ou seja: onde você é criado é decisivo para o resto da vida. De um jeito menos pomposo, sabemos que a vida é assim mesmo. Acredito nisso e acredito na sorte de ter vivido num lar em que o conhecimento e o estudo eram coisas divertidas e, ao mesmo tempo, fundamentais.