Nelson Fonseca Neto
Bifurcado
Só que no meio do caminho a vida dá umas rasteiras na gente. Ponham a culpa no YouTube
Tenho vontade de escrever a respeito de coisas mais sérias de vez em quando. Um exemplo: por que não tratar de grandes romances brasileiros dos séculos 19 e 20? Falar da maravilha que é “Fogo-morto”, de José Lins do Rego. Muito pano pra manga.
Ainda mais porque resolvi reler José Lins do Rego e Graciliano Ramos. Pensei que seria um processo ranheta; que eu encontraria falhas; que eu sairia decepcionado da jornada. Nada disso. “Fogo-morto” e “São Bernardo” são dois dos grandes romances da literatura mundial.
Uma coisa vai puxando outra. Vai batendo aquela vontade de montar um curso de longa duração que contemplasse romances fundamentais para compreender o Brasil. Além dos já mencionados, daria para encaixar no programa obras como “Agosto” (Rubem Fonseca), “Macunaíma” (Mario de Andrade), “Os ratos” (Dyonelio Machado) etc.
Escrevi os três primeiros parágrafos para provar o seguinte: eu estava animado para tratar de grandes questões culturais brasileiras. Só que no meio do caminho a vida dá umas rasteiras na gente. Ponham a culpa no YouTube.
O João Pedro está naquela fase de pedir desenhos do “Mundo Bita” e dos “Bolofofos”. São uns desenhinhos bacanas, engraçados, caprichados. Somos uma família urbana e não achamos que a produção audiovisual é uma criação satânica. É só tomar cuidado com os exageros.
Pois bem. Vendo os desenhos com a criança, impossível não constatar: o YouTube não tem pudor na hora de colocar as propagandas bem no meio do desenhinho. Quem, como eu, é viciado em YouTube entende o drama.
Dia desses, a Patrícia estava junto, bem na hora da propaganda de um serviço premium oferecido pelo YouTube. Por uma módica mensalidade, você não é atormentado por comerciais invadindo o vídeo interessante. O exemplo usado pelo YouTube foi deveras convincente.
Mostrava uma jovem relaxando ao ouvir um vídeo de relaxamento. Tem dessas coisas, caso você não saiba. Alguns desses vídeos têm quase oito horas de duração, tempo que especialistas preconizam como o ideal para um sono reparador. (Faz algumas décadas que não sei o que é dormir por oito horas seguidas, mas isso é uma outra história.)
Muita gente ouve esses vídeos para induzir o sono. Eu já fiz isso. Parei porque, bem quando o sono era profundo, surgia um comercial com uma sirene. Juro que não é brincadeira. Uma sirene alucinada no meio de um vídeo que deveria servir para modular o sono. Na propaganda do YouTube veiculada pelo Youtube, a mensagem é clara: caso pague pelo serviço premium, você poderá relaxar em paz. Perceberam? Você paga ao responsável pela importunação para não ser importunado. Onde mesmo a gente encontra esse tipo de relação?
Na máfia, nas milícias, no acerto com o flanelinha. Fiz esse comentário com a Patrícia, e ela disse para eu escrever a respeito aqui neste espaço. Ela sugeriu uma coisa dessas porque eu estava um tanto enfático no momento do comentário. Sabiamente ela percebeu que o marido estava pronto para expor as entranhas aos leitores. É o que vem ocorrendo nos últimos doze anos.
E assim a seriedade deu mais uma vez lugar ao destempero. Viver é perigoso, como diria Guimarães Rosa.