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Nelson Fonseca Neto

Corrida de obstáculos

Eu não podia olhar pra frente com tranquilidade. Tinha de olhar pro chão, pra calçada

06 de Abril de 2023 às 23:01
Cruzeiro do Sul [email protected]
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“Pitfall” é um game que fez sucesso nos anos 80. Era tudo muito simples. Um hominho tinha de atravessar uma floresta inóspita: um escorpião branco deveras agressivo, uma naja, areia movediça etc.

Lembrei do jogo dia desses, ao caminhar pelo centro da cidade. Gosto de bater perna. Ideias vão surgindo. Problemas se resolvem. Essas coisas.

Mas algo estava me incomodando naquele dia. Eu não podia olhar pra frente com tranquilidade. Tinha de olhar pro chão, pra calçada. Questão de sobrevivência, e não de introspecção. Prefiro não quebrar a perna. Não sou muito fã de centros cirúrgicos.

Seria interessante criar uma lista dos obstáculos que enfrentamos nas calçadas. Os clássicos buracos. Os trechos ridiculamente estreitos. A inventividade do sujeito que resolve embelezar a frente da sua casa trocando o piso original da calçada por azulejos escorregadios. O barzinho que decide que as mesas e cadeiras são as donas da calçada. O glorioso lixo e sua trupe de garrafas de cerveja, excrementos de animais e tocos de madeira.

Olho pras calçadas e lembro dos médicos que combatem o sedentarismo com discursos severos. Um deles diz que para se vencer o sedentarismo não é necessário frequentar uma academia cara. Uma caminhada algumas vezes por semana já seria algo muito bom. Concordo enfaticamente, pelo menos no plano teórico.

A cuíca ronca diferente na prática. Eu frequento academia por causa da musculação. Aprendi que reforçar o chassi é fundamental. Agora, afirmar que gosto da academia é forçar bastante a barra. Não é possível que alguém goste genuinamente da academia. Frequenta-se um lugar desses por necessidade. Se eu fosse seguir o meu desejo, trocaria todos os aparelhos por caminhadas.

Aí eu penso nas pessoas que não podem ou não querem frequentar a academia. Penso nas pessoas que animadamente decidem mexer o corpo através das delícias da caminhada. Condomínio fechado não conta. Ali as caminhadas são tranquilas. Sei lá, acho que são tranquilas. Talvez eu ignore os perigos daqueles territórios.

Penso no centro da cidade e adjacências. Gosto de caminhar a passos rápidos e largos. É meio assustador pra quem vê de longe. Parece que estou fugindo de algo ou perseguindo malignamente alguém. Não consigo fazer diferente. Isso me acompanha há muito tempo. E isso traz alguns problemas.

Sou o primeiro a reconhecer: meu jeito de andar é mais adequado a paisagens vastas. Uma estepe. O sertão do Guimarães Rosa. Indiana, Kentucky, Sibéria, essas paragens. Tento me adequar ao ato de atravessar uma rua ou à situação de me deparar com outros seres humanos. Não é tão fácil assim.

Aí, junto com essa coisa toda, preciso evitar o buraco, as fezes do cachorro, o prego enferrujado, a garrafa quebrada de cerveja, o pacote de Fandangos, o porcelanato que parece um sabão, o matinho que esconde o mosquito. Tem hora que dá vontade de desistir. Até tenho um exercício substituto: como moro no décimo andar, posso subir e descer as escadas até dizer chega. Fico imaginando o medo dos vizinhos quando ouvirem uns passos aleatórios na escadaria.

Mas não desisto. As ruas são imbatíveis. E, assim, o Pitfall do século 21 continuará dando seus pulos por aí.

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