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Nelson Fonseca Neto

Acordar para a vida

Guimarães Rosa é grande, mas Machado de Assis é o dono do meu coração

23 de Março de 2023 às 23:01
Cruzeiro do Sul [email protected]
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Aos 20 anos, eu gostava de imaginar como seria aos 45 anos. Você quer saber se fui bem na futurologia. Fui mal, muito mal. Errei feio.

Eu era muito mais sério aos 20 anos. Só lia livros densos. Acompanhava devotamente as grandes questões nacionais e internacionais. Meus contos eram sombrios. Naquela época, eu projetava que aos 45 anos eu seria um autor de romances complexos, com personagens atormentadas. Tudo com muita névoa, literal e metaforicamente.

De acordo com as minhas projeções, eu seria considerado um cara a ser ouvido em questões da conjuntura nacional. Eu diria minhas sábias palavras com a mão no queixo e um olhar meio parado. Nada escaparia do meu radar. O palpiteiro sorumbático.

Engraçado que a minha seriedade era, digamos, intelectual. Eu saía com os amigos aos finais de semana e me arrebentava de rir. Jogava futebol todo santo sábado. Meu relacionamento com os meus pais e o irmão sempre foi luminoso, leve, sem firulas. A vida vivida era boa; a vida intelectual era meio posuda.

Ainda bem que a gente supera essas coisas. Aos 45 anos, casado, pai de um menininho, fiquei mais cheio da graça. Hoje mesmo eu comentei com a Patrícia sobre o meu afastamento da literatura “séria”. Não é algo deliberado, uma decisão tomada na virada do ano. A coisa simplesmente aconteceu.

Não faz tanto tempo assim, eu resolvi reler, sem desviar a atenção, os romances de Dostoiévski. Foram semanas dominadas por personagens um tanto excêntricas, para recorrermos ao eufemismo. Lembro que cheguei arrebentado ao final daquela maratona literária. Deus me livre fazer um treco daqueles novamente.

Continuo achando Dostoiévski gigantesco e tal e coisa, mas a minha praia tem sido outra. Pode ser que as coisas mudem, sei lá. Nesta vida a gente não pode cravar nada. Sei do que está acontecendo: os livros engraçados me atraem muito mais. Livros que, aos 20 anos, eu rotulava como algo de segunda categoria. Numa outra coluna eu conto melhor sobre isso.

Abandonei o desejo de escrever um romance sério. Sei que parece desculpa de quem não aguentou o tranco da empreitada, mas aquilo não era para mim. Impossível povoar minhas histórias com personagens sábias ou trágicas. Guimarães Rosa é grande, mas Machado de Assis é o dono do meu coração.

Faz tempo que larguei mão do sonho de viver de literatura. Entram em jogo também um aspecto geográfico e um aspecto temporal: Brasil, século 21. Sonhar é bom, mas calma, né, minha gente? Escrever uma crônica semanal já mata a minha fome de ser escritor.

Acompanho muito menos as grandes questões nacionais e internacionais. Não me orgulho disso. Às vezes me cobro. Muita gente boa perto de mim discute com desenvoltura acerca de questões urgentes. Eu até tento, num ou noutro dia, ser mais responsável. Mas dura pouco. Minha atenção se desvia em poucos minutos, começo a sentir saudade das abobrinhas.

Olha só que coisa mais maluca: aos 20 anos, eu queria ser um escritor que revolucionaria a maneira como o leitor olharia para si mesmo. Agora fico satisfeito quando descubro que alguém ri das coisas que escrevo neste espaço. E não é que a gente acaba evoluindo nesta vida?

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