Nelson Fonseca Neto
Sermão
Tudo o que nos rodeia precisa vir embalado com o sermão ou com a historinha melosa
Prometi, na última coluna, esmiuçar minha aversão por uma faceta do mundo contemporâneo: a mania do sermão. Sermão, lição de moral, discurso edificante, essas coisas. Acho que “sermão” está de bom tamanho.
Minha implicância vem de longa data, coisa de uns dez anos pelo menos. Mas era uma implicância difusa, que ficava nos subterrâneos da existência. Aquele incômodo que está ali, mas que a gente não sabe nomear.
Pois bem: recentemente eu me deparei com uma caixinha de água mineral. Expliquei o que aconteceu no último texto. Se você não leu, dou uma colher de chá: eu tinha comprado, na farmácia, uma caixinha que nem aquelas de leite, só que menor com água; a ideia era usar a bendita caixinha na minha rotina de professor bebedor de água no calor sorocabano.
Resolvi ler as laterais da caixinha. Esperava me deparar com informações áridas. Elas estavam ali. Há leis para isso, suponho. Mas o mundo insiste em me dar rasteiras. Junto com as informações havia um texto cheio de marola.
Quem redigiu aquilo resolveu contar uma historieta explicando os motivos de a empresa investir na água em caixa. Uma linda história para boi dormir. Dormir, não; entrar em coma. Nessas horas eu fico impressionado com a criatividade humana. Pena que ela apareça, muitas vezes, na forma de abobrinhas.
Depois o redator da caixinha abriu a sua caixa de ferramentas e passou a dirigir-se diretamente ao leitor. Eu quase escrevi “dirigir-se diretamente à vítima”, mas vamos continuar com “leitor”. Quando o autor se dirige ao leitor, temos a função conativa da linguagem. Cartas e textos publicitários são terrenos férteis para a função conativa. Faz parte do jogo. O lance aqui é a previsibilidade. Quando começo a ler um texto publicitário, eu espero encontrar palavras melífluas dirigidas a mim.
Convenhamos: palavras desse jaez na caixinha de água é invadir o território da bizarrice. Tomei um susto com a historieta da empresa. Mas uma coisa a vida me ensinou: tudo sempre piora. Ou: não há limites para a chatice humana. Depois da historieta, o redator disse que eu seria mais amado pela empresa caso reutilizasse a caixinha. “Amado pela empresa”. Nunca pensei que alguém seria capaz de combinar as palavras desse modo. Pensei no esforço de Camões para discorrer a respeito do amor em seus sonetos maravilhosos.
O que eu li na caixinha serviu de gatilho. Aquelas palavras grotescas não são algo atípico. Pelo contrário. São sinais de algo que, lamentavelmente, veio pra ficar: tudo o que nos rodeia precisa vir embalado com o sermão ou com a historinha melosa.
Dá uma saudade danada das propagandas mais objetivas de banco. Lembro tão bem como aqueles filminhos eram mais, sei lá, objetivos. Eles falavam basicamente de juros e taxas. Nada do que temos hoje, com lojinhas de brigadeiro artesanal na vilinha toda fofinha. Ou de quando a propaganda de panetone mostrava, que loucura!, um panetone sendo cortado, e não um velhinho simpático fazendo um panetone com uma colher de pau. Como se aquelas caixas que vemos empilhadas no supermercado no fim do ano viessem da casinha do velhinho, e não de uma indústria. Ou de quando não tinha essa firula de camiseta estampar frases sábias ou artísticas.
Sermões, sempre é bom lembrar, só os do Padre Vieira.