Nelson Fonseca Neto
O chamado
Aí surge uma questão interessante: é possível ter um pé em cada canoa? A pessoa consegue ler Tolstói e compreender os intrincados meandros de um encanamento?

Conhecer a origem das palavras é uma viagem deliciosa. E vicia. É uma fome nunca saciada. Acho que a mania se acentua com a idade. Há quem diga que etimologia (estudo da origem e da evolução das palavras) é coisa de velho. Como é bom envelhecer!
Na semana passada eu estava encafifado com a palavra “vocação”. Fui xeretar. Dei com a relação entre “vocação” e “chamado”. “Vocação” vem de “chamado”. Achei bonito. E verdadeiro. Não é de bom alvitre ir contra a vocação, o chamado.
A orientação vocacional serve para a pessoa descobrir uma profissão que a faça feliz. “Vocação” e “profissão” costumam caminhar de mãos dadas. O chamado também pode aparecer para explicar um gesto filantrópico de impacto. Coisa de missionário, de gente que vai à luta seguindo os “Médicos sem fronteira”. Ou seja: “vocação” tende a se ligar a aspectos cruciais da vida do sujeito.
E as vocações miúdas, aquelas que não são alardeadas? Aquela vocação que é confundida com o jeitão da pessoa. Lembra daquele amigo meio caladão que solta a frase decisiva na hora certa? Vocação. E aquela amiga que na hora mais sombria faz uma piada que espanta as nuvens? Vocação. E aquele parente distante que misteriosamente acalma a criança chorosa? Vocação.
Na minha modesta visão, nada supera a reunião de condomínio como símbolo de algumas vocações miúdas. Participei de algumas reuniões de condomínio ao longo dos últimos anos. Algumas mais pacíficas, outras mais bélicas. Não compareci movido por inspiração. É que as reuniões das quais participei deliberaram a respeito de tópicos cruciais do prédio. Exemplo: portaria tradicional ou portaria remota? Digamos que a Patrícia, assoberbada por outras obrigações, convenceu-me enfaticamente da importância do meu comparecimento àquelas reuniões.
Se alguém filmasse as reuniões das quais participei, as imagens mostrariam um sujeito meio grandalhão (eu), meio afastado, olhando perplexo para os companheiros condôminos. É que os companheiros condôminos, nessas reuniões, tratavam com destreza de assuntos como prumada, vistoria dos bombeiros, CLT etc. Ainda bem que passei a frequentar essas reuniões numa época de Google e smartphones. Claro que, quando ouvi “prumada”, tirei discretamente o celular do bolso. Agora não passo mais vergonha quando alguém fala com jeito preocupado da prumada.
Se eu escrevesse este texto anos atrás, eu adotaria um tom desdenhoso. Como se as pessoas práticas fossem privadas das delícias da rica vida intelectual. Eu era meio bobo anos atrás. Hoje eu respeito profundamente as pessoas práticas. Respeito a vocação dessas pessoas.
Aí surge uma questão interessante: é possível ter um pé em cada canoa? A pessoa consegue ler Tolstói e compreender os intrincados meandros de um encanamento? Tem gente assim? Tem: a Patrícia. Ela realmente se importa com os tópicos de uma reunião de condomínio e os domina. Melhor: acha que esses tópicos são interessantes. O nome disso é vocação. Depois ela lê um romance e faz observações certeiras. Certeiras mesmo. O nome disso é vocação.
Aí a gente vai chegando ao fim do texto e repara que escreveu sobre vocação para, na verdade, mostrar que a esposa é um assombro. O nome disso é amor.