Nelson Fonseca Neto
O porão
Não sei se com vocês acontece isso, mas a minha memória é arisca que só. Na prática: fatos importantes aparecem tomados pela névoa e ninharias aparecem com uma nitidez grotesca

A memória é um treco complicado. Não sei se com vocês acontece isso, mas a minha memória é arisca que só. Na prática: fatos importantes aparecem tomados pela névoa e ninharias aparecem com uma nitidez grotesca. Eu mal lembro de quem estava comigo naquela data tão especial, mas sei qual camiseta estava usando na hora de ir embora da praia em 1995. Vai ver que é por isso que eu sou meio leviano.
Essa história da memória veio à baila por causa de um vídeo antigo que eu estava vendo no YouTube. Eu já disse aqui que o meu passatempo predileto é fuçar vídeos dos anos 80 e 90 naquela maravilha que é o YouTube. (Importante o registro: saio correndo de youtubers. Meu negócio é com as velharias.)
Meu hobby é marcado por fases. Teve a época da garimpagem dos comerciais antigos, dos telejornais que passavam no fim da noite, das novelas mais dramáticas, dos programas de entrevistas, dos jogos de futebol, dos jogos do campeonato paulista de basquete feminino. Agora estou atolado nos compilados de gols da rodada.
Alguma alma gentil disponibilizou vários vídeos longos que juntam os gols da rodada de um ano inteiro. Estou no glorioso ano de 1991. Vivi meu auge de fanático por futebol naqueles anos iniciais dos anos 90. Eu não perdia um jogo de futebol que a TV transmitia. Podia ser qualquer coisa. Campeonato italiano nas manhãs de domingo, campeonato carioca e campeonato paulista nos dia de semana à noite. Todos os debates, pouco importando o horário.
Não recorrerei aqui à nostalgia que distorce as coisas, dizendo que naquele tempo, sim, futebol era futebol. Seria sacanagem com a molecada que vive hoje o que eu vi quase trinta anos atrás. Cada época tem as suas delícias. Isso posto, preciso dizer o seguinte: tenho dificuldades para acompanhar os jogos e debates hodiernos. Os jogos porque tudo ficou muito rápido, a grama muito baixa, os atletas muito fortes. Os debates porque os comentaristas recorrem a análises táticas que ultrapassam o meu entendimento.
Mas voltemos aos vídeos antigos que tenho visto na hora em que a Patrícia e o João Pedro já desfrutam o sono dos justos. Não tem explicação, simplesmente aconteceu: lá pelas tantas, um comentário de uma apresentadora me fez resgatar uma cena que veio com uma força absurda.
Foi num jogo entre Guarani e Botafogo de Ribeirão Preto, no estádio Brinco de Ouro da Princesa, em Campinas. Um jogador de nome Bira, do Botafogo, avança com a bola da intermediária. Chegando perto da grande área do Guarani, Bira manda um chutão. A bola bate no travessão, depois nas costas do goleiro e entra. Quem era o goleiro? Carlos, que defendeu a seleção brasileira na Copa do Mundo do México em 1986. Não sei se vocês sabem: naquela Copa, o Brasil foi eliminado pela França nos pênaltis. Numa das cobranças da França, a bola bateu na trave, depois nas costas do Carlos e entrou. Nosso goleiro virou símbolo do azar.
Pois bem. E a coisa acontecer duas vezes com o mesmo sujeito? Lembro do lance e lembro de um detalhe que considero o emblema do sadismo: quando o jornal de esportes da hora do almoço mostrou os gols de Guarani e Botafogo, a apresentadora disse, depois do gol que Carlos levou: “essa história nós já conhecemos”. Achei, na época, de uma crueldade inconcebível. Mas vocês sabem como as coisas são. Fiquei com receio de ser traído pelo memória. Assim, procurei, nos últimos dias, o trecho em questão. Foi um sufoco, mas encontrei. Eu estava certo. O gol foi daquele jeito. Idem para o comentário sádico.
Vocês poderiam imaginar que estou me gabando aqui. É o contrário. Isto aqui é um lamento. A memória não pode ser um porão atulhado de quinquilharias. Ou pode, sei lá, e vocês acham que estou fazendo onda ou marola. Falando em “marola”, Marola foi um goleiro do Santos no início dos anos 80. Ele tinha cabelo tigelinha. Uma vez o Santos veio jogar em Sorocaba e... chega! Vou tentar pensar nos grandes assuntos da nação.