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Nelson Fonseca Neto

Envelhecer é...

Vale a reflexão: tão importante quanto "o que se fala" é o "como se fala". Nesse lance de lidar com o tempo, o sujeito pode ser um Rubem Braga ou um reacionário caricato. Ginga é tudo nesta vida.

28 de Outubro de 2022 às 00:01
Cruzeiro do Sul [email protected]
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Lembro, lá pelo meio dos anos 80, que uma das minhas primas tinha umas figurinhas de dois bonequinhos cabeçudos. Era uma série que tentava exaltar o amor perfeito. Não era à toa que cada figurinha começava com “Amar é...”. Para completar as reticências, os desenhinhos mostravam que: amar é... surpreender a pessoa amada diariamente; amar é... levar chá quentinho na cama. Essas papagaiadas. Mas não é disso que eu quero falar. Usei o lance do “Amar é...” para falar de outra coisa. Perdoem a embromação.

O que eu queria dizer é o seguinte: em vários momentos, esta coluna é uma espécie de “Amar é...”, só que trocando “amar” por “envelhecer”. Se eu soubesse desenhar, faria a série “Envelhecer é...”. Grande novidade que a crônica trate do envelhecimento! “Cronos”, que serve de base para “crônica”, significa “tempo”. Assim, a passagem do tempo é essencial para a crônica.

É por isso que os cronistas assolam os leitores com recordações de bailinhos de décadas atrás, com lamúrias sobre a internet, com visões idílicas da cidade com poucos carros. Essas coisas. Vale a reflexão: tão importante quanto “o que se fala” é o “como se fala”. Nesse lance de lidar com o tempo, o sujeito pode ser um Rubem Braga ou um reacionário caricato. Ginga é tudo nesta vida.

Pois bem. Vou pensando por aqui sobre envelhecer. Os que me acompanham sabem que, de uns meses pra cá, emagreci e voltei a praticar exercícios físicos. Então, pelo menos no quesito corpo, dei uma remoçada. Mas reparo que, ao longo desses anos todos, minhas considerações sobre envelhecimento tocam muito pouco nos aspectos corporais e concentram-se na alma, no temperamento, no jeitão, enfim, usem o nome que vocês preferirem.

Falo por mim. Não quero instituir verdades grandiosas. Já é difícil o suficiente começar a compreender o próprio umbigo. Percebo que, em mim, os desejos grandiosos foram dando lugar a anseios mais modestos. Isso se deu em vários departamentos da minha vida. O da literatura pode ser um bom exemplo.

Quando eu tinha 20 anos, comecei a escrever contos. Um professor da faculdade leu e publicou numa revista de prestígio. Caminho pavimentado para a glória das letras nacionais, certo? Errado. Fiquei um tempão sem escrever contos. Muitos anos mesmo. Tento entender o que aconteceu. Seria firula demais da conta dizer que foi bloqueio criativo. Seria fácil emendar uns dramas do escritor atormentado pela busca da frase perfeita ou assolado por personagens arredias. Lamento dizer que não foi o que se deu. A vida é sempre mais prosaica.

Eu simplesmente desencanei. Sei lá, perdeu a graça. Apareceram coisas mais interessantes para fazer. Continuei lendo. Tornei-me professor. Não consigo imaginar a minha vida sem os livros. Apenas interrompi a jornada do ficcionista. Aí, algum espírito de porco aparece dizendo: interrompeu por falta de talento. Como discordar? Falta de talento, falta de paciência, e assim a banda seguiu tocando.

E seguiu tocando de um jeito que me agrada. Sim, afinal, escrevo semanalmente. Tenho leitores que conversam comigo. Uma vez ou outra, mando um texto que me agrada. Quando escrevo, uso uma lupa para o presente e para o passado. Vou recolhendo detalhes reveladores. Estou no trânsito e vem aquela voz simpática: opa, isso rende uma crônica. É divertido passar o tempo assim.

Resumindo: a vida é boa. E envelhecer é... reconhecer isso.

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