Nelson Fonseca Neto
Um pra cá, um pra lá
Estou com uma mania meio besta. Coisa, sei lá, de uns dois, três meses pra cá. Eis a dita: tenho usado o celular como gravador. Medo de não registrar aquele estalo que pode render uma crônica. Ansiedade pouca é bobagem.
Resultado até agora: longos minutos de falas desconexas. Dá até vergonha de revisitar aquilo. Parece tão longe! A memória é traiçoeira. Os estalos são traiçoeiros. A ideia promissora transforma-se em algo ridículo. A gente acaba questionando a própria sanidade mental. Será que estou batendo bem das bolas? Como fui capaz de conceber aquilo?
Mais de uma vez aconteceu comigo: acordo, de madrugada, com a certeza de ter encontrado o caminho para o conto há tanto tempo desejado. Impossível não ficar eufórico. Meio tonto, anoto num papel três ou quatro palavras. Volto a dormir com a certeza de que, ao acordar, é só trabalhar com dedicação naqueles garranchos para que tudo seja devidamente recompensado. E assim mais um conto desfilaria pelas passarelas brasileiras.
Nunca deu certo. Quando acordo, aquelas palavras não dizem nada. Forço a barra em busca do fio que possa me conduzir àquilo que me fez acordar de madrugada. Em vão. Consola saber que muitos escritores passaram por isso. Em poucos minutos, o trágico vira cômico. A gente acaba rindo dos próprios delírios de grandeza e toca a vida. Vivendo e aprendendo? Esquecendo e aprendendo.
Estava tudo pronto para a crônica desta semana: seria sobre o tempo nublado. É que eu gosto de nuvens cinzentas. Eu lembraria dos meus tempos de escola. Da minha empolgação com o céu cinza enquanto a professora passava o ditado. Ou de como os barulhos do trovão ajudavam na hora de fazer uma conta mais complexa.
Seria uma crônica de clima e seria um ensaio sobre a relação que há entre o nosso estado de espírito e os elementos externos. Certamente eu faria umas associações meio malucas. Traria revelações da minha intimidade. Ou seja: o de sempre. Há onze anos e alguns meses venho fazendo isso por aqui.
Eu estava contentinho com a semente que estava germinando. Tempo nublado. Memórias. Associações esquisitas. Viva, temos uma crônica! Só que, do nada, enquanto eu estava no meu carro esperando o semáforo abrir, um Monza caindo aos pedaços passou do outro lado da avenida. Foi o suficiente para o tempo nublado perder a graça. Fiquei pensando no abençoado Monza.
Chegando ao estacionamento da escola onde trabalho, acionei o gravador do meu celular. Transcrevo a desgraça: “Acabei de ver um Monza caindo aos pedaços. E pensar que já foi considerado um carrão. Escrever sobre a tragédia das coisas que envelhecem”.
A gente grava essas coisas como se elas fossem o puro creme do talento literário. Não adianta negar. Quem se dedica a anotar uma ideia está meio embriagado com as possibilidades daquelas palavras. Quando vi o Monza, vislumbrei o ensaio ousado e cheio de firulas que aquilo poderia render.
O ensaio não apareceu. É bem provável que ele não apareça. A crônica nublada foi sufocada. Ficaria estranho se ela aparecesse na semana que vem. Timing é tudo nesta vida. Perdi a chance. Paciência. E fica a lição: escrever é dar com a cabeça na parede.