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Nelson Fonseca Neto

Ser ou não ser

Espero ter mostrado, nos dois primeiros parágrafos deste texto, que conheço os limites do razoável quando o assunto é apego ao passado

16 de Setembro de 2022 às 00:01
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Nas primeiras páginas de “Dom Casmurro” encontramos Bentinho, o narrador, mostrando que a casa onde mora na maturidade é a reconstituição minuciosa da casa da infância. Esse é um dos exemplos mais notáveis de como o apego ao passado pode ganhar cores macabras.

Outro exemplo interessante: a senhorita Havisham, personagem do romance “Grandes esperanças”, de Charles Dickens. Ela é solteira, rica e um tanto excêntrica. Ao longo de algumas dezenas de páginas, conhecemos alguns episódios perturbadores da vida de Havisham. Num deles, seu noivo a abandona no dia do casamento. A festa seria na mansão da família Havisham.

Digamos que a senhorita Havisham não lidou muito bem com a bordoada que a vida deu. Manteve inalterado o aposento onde seria dada a recepção. “Inalterado” não é palavra de efeito. É inalterado mesmo. Até o bolo -- embolorado, claro -- está ali. O relógio foi quebrado para marcar o instante em que a tragédia chegou à família. O que acabamos de ver é o macabro dando cambalhota dupla.

Espero ter mostrado, nos dois primeiros parágrafos deste texto, que conheço os limites do razoável quando o assunto é apego ao passado. Isso não impede que eu fique triste ao perceber que algumas coisas da minha infância e adolescência desapareceram. Falo de prédios e casas. Não quero me embrenhar no terreno dos costumes.

Sei que a cidade é algo vivo. É de sua natureza mudar. Bairros envelhecem. Ruas residenciais tornam-se ruas comerciais. O que era pasto em pouco tempo está coberto de asfalto. Do casarão estiloso só sobrou a casca, e olhe lá. Nessas horas, a razão luta com a paixão. Parece desenho animado com o protagonista vivendo um dilema, com o anjinho num ombro e o diabinho no outro.

A razão: a vida é assim mesmo. Aquela casa estava condenada. O que apareceu em seu lugar é bem mais bonito e útil. A vida se renova. A construção civil ser turbinada. Essas coisas.

A paixão: passei muitos anos felizes naquela casa. Tinha uma cômoda pesadona perto da mesa de jantar. Naquele quarto a gente via filmes de terror. Naquela sala de estar eu levei um tombo no aniversário do meu primo. Essas coisas.

É mais fácil exercer a razão com aquilo que nos é distante. Nesses momentos, sacamos argumentos em defesa do progresso e do dinamismo da vida. O calo aperta quando descobrimos que a casa da infância foi demolida. Aí, enxergamos somente a brutalidade gananciosa da vida.

Eu já disse aqui, várias vezes, que sou uma criatura do centro da cidade. Também já disse que caminho por suas ruas, preferindo aquelas com as construções mais antigas.

O centro mudou muito, e não tinha como ser de outra maneira. Mas mudou de forma menos agressiva, se compararmos com outros pontos da cidade. Isso acaba dando alento para o andarilho nostálgico. Mas é um alento frágil, pois acabamos nos deparando com alguns prédios queridos em petição de miséria. Não darei nome aos bois, pois seria dolorido demais da conta.

E assim batemos perna por aí, ora entrando nas avenida do progresso, ora bobeando pelas vielas da infância.

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