Buscar no Cruzeiro

Buscar

Nelson Fonseca Neto

Primeira vez

Ainda no terreno das fotos, algo sempre será intrigante para mim: as fotos de pés

19 de Agosto de 2022 às 00:01
Cruzeiro do Sul [email protected]
placeholder
placeholder

Minha imaginação tem sido atormentada por aquilo que eu chamaria de “Síndrome da primeira vez”. Não é difícil de explicar. A tal síndrome é uma forma pomposa de dizer que tenho pensado bastante em como alguém fez algo pela primeira vez. Tenho me concentrado mais em resultados concretos. Por exemplo, quando alguém resolveu tirar a primeira “selfie”. Bem se vê que a minha mente não é povoada por soluções para os grandes dilemas da humanidade.

Mas voltemos à “selfie”. Hoje você não consegue pensar num mundo sem “selfie”. (Eu ia dizer a “praga da selfie”, mas não quero contaminar a opinião do leitor.) Já parou para pensar que nem sempre foi assim? Que a vida existia sem gente andando por aí com o braço esticado, celular na mão, e beicinho para a câmera?

Talvez seja maluquice minha, mas a existência ou não da “selfie” é crucial para a maneira como nos relacionamos com o mundo. Com o advento da “selfie”, eu posso ser vaidoso sem constrangimentos. Seria uma trabalheira danada pedir incessantemente que as pessoas tirassem fotos minhas. (Isso tudo eu consigo entender; difícil é lidar com o beicinho; se bem que falaram que o beicinho saiu de moda; o lance agora é o “olhar parado”.) Quem tirou a primeira “selfie”? Tal pessoa saberia que uma traquinagem mudaria o curso das sociedades?

Ainda no terreno das fotos, algo sempre será intrigante para mim: as fotos de pés. É exagero dizer que um sujeito como eu, com quarenta e poucos nas costas, é fronteiriço? Passei boa parte da minha vida saracoteando pelo mundo analógico. Aí vem o casamento do celular com a internet para bagunçar o esquema. Tudo era tão estável!

E uma das marcas da estabilidade dos anos 80 se dava no terreno da fotografia. As câmeras precisavam de filmes. Os filmes não eram baratos. Os filmes precisavam ser revelados. A revelação levava tempo e não era barata. Ou seja: “tirar foto” era algo a ser feito com sabedoria. É por isso que as festas de aniversário de antigamente mostravam pessoas fazendo pose para as fotos. De preferência, vários convidados reunidos. Para economizar, claro.

As coisas eram mais espartanas. Até parece que criança saia perambulando pela festa com uma câmera na mão. Tudo era muito mais contado. Os precavidos punham filme novo na câmera e sabiam se estava rolando ou não exagero no meio da farra. Não foram poucas as vezes em que momentos deixaram de ser eternizados por conta do fim do filme.

Vivemos a farra do boi com o mundo digital. O maior problema, aqui, é acabar a bateria do celular. Eu posso tirar, nas horas de ócio, umas duzentas selfies. Com isso, viramos inconsequentes. Como se tivéssemos recebido um prêmio infinito na loteria. E assim vamos filmando e fotografando loucamente.

Só uma situação dessas explica as fotos dos pés. A foto do pé, para mim, é a fronteira final da civilização. Não consigo conceber algo mais esquisito. Aí não tem jeito: acabo pensando na pessoa que falou, pela primeira vez: “opa, vou tirar uma foto do meu pé e colocar nas redes sociais”. Há, numa situação dessas, um narcisismo invencível. A pessoa acha que até seu pé carrega a marca da perfeição. Claro que há pés e pés. Melhor: há fotos e fotos de pés. Há quem realmente ache que seu pé é formoso e há quem usa o pé como parte do cenário. No segundo caso, o pé é álibi para mostrar que o seu dono está numa praia badalada. É pra mostrar prosperidade. É pra fazer “fusquinha”. (“Fazer fusquinha”: tentativa de despertar a inveja de outrem.)

Puxa vida, e não é que agora fico imaginando a primeira pessoa a usar “fazer fusquinha” como sinônimo de despertar a inveja? A vida é fascinante.

[email protected]