Nelson Fonseca Neto
Depende
Os serviços de streaming são cômodos? Opa, muito. São maravilhosos? Calma, fera. Segure a empolgação
Já perguntaram se eu gosto dos avanços tecnológicos. Como se eu tivesse de responder categoricamente com um “sim” ou com um “não”. O que seria, convenhamos, uma asneira. Qualquer pessoa com mais de dois neurônios responde: “depende”.
O vaso sanitário é um avanço tecnológico. Neste caso, gosto do avanço tecnológico. Quando leio “O cortiço”, aquele tétrico romance do final do século 19, sinto calafrios nas cenas transcorridas na latrina no fundo do quintal. (Um país não poder ser feliz abrigando milhões de pessoas sem privada em casa.)
Já ouvi que, anos atrás, uma chamada telefônica de Sorocaba para Marília demorava seis horas para ser efetivada. Tinha a telefonista atuando como intermediária. Por mais que as pessoas romantizem, devia ser um perrengue do cão. Neste caso, gosto do avanço tecnológico.
Não muito tempo atrás, os carros abastecidos com etanol eram meio temperamentais no frio. Cada família tinha um ritual para fazer o dito cujo funcionar. Casamento da técnica com a superstição. Impropérios tinham de fazer parte do pacote. Se não estou enganado, o advento da injeção eletrônica resolveu a parada. Neste caso, gosto do avanço tecnológico.
Assinamos, aqui em casa, alguns serviços de streaming. Usamos menos do que a média nacional. Temos criança pequena no apartamento. Impossível grudar a corcunda no sofá por horas. Seria abandono de incapaz. Mas, nas brechas, a gente vê umas séries. Os serviços de streaming são cômodos? Opa, muito. São maravilhosos? Calma, fera. Segure a empolgação.
Eu era rato de videolocadora. Vamos ser honestos? No Brasil dos anos 80, as locadoras não eram lá muito bem fornidas. As crianças eram condenadas a ver sempre os mesmos filmes nas prateleiras. É por isso que a minha geração sabe de cor e salteado filmes como “Rocky IV” e “O Grande Dragão Branco”. Não éramos cinéfilos analisando tais obras geniais com a lupa da crítica disciplinada. Apenas estávamos num mato sem cachorro.
As coisas melhoraram bastante nos anos 90 e início dos anos 2000. Foi a época em que eu, recém-saído da adolescência, botei na cabeça que seria crítico de cinema, e um bom crítico de cinema tem por dever conhecer os clássicos. Eu percorria as locadoras da cidade em busca de VHS e DVDs de filmes dos anos 30 e 40. A Warner tinha uma coleção maravilhosa de filmes para videocassete: capa cinza, três ou quatro fotos no verso, sinopse que despertava a curiosidade do incauto. Devo muito da minha educação a esses filmes. Passou a piração de ser crítico de cinema, mas não o amor pelos filmes antigões.
Sinto falta de sair de casa em busca de filmes na locadora? Olha, sinto. Primeiro porque não eram deslocamentos monumentais. Nunca morei em zona rural, sempre morei na região central, então eram trajetos de poucos minutos de casa até a locadora. Sem contar que eu fiquei amigo do Eugenio e do Célio, duas enciclopédias ambulantes que trabalhavam em locadoras. Aprendi pra caramba com aqueles caras. Os serviços de streaming não trocam ideia comigo.
Sem contar que as locadoras tinham muito mais clássicos do que os streamings da vida. Consegui encontrar grande parte da filmografia de John Ford e Bogart nas locadoras. Faça o teste nos serviços oferecidos hoje. As listas de clássicos são mixurucas de dar dó.
As locadoras sumiram do mapa. Hoje, segundo os fanáticos por séries, posso “maratonar” as melhores produções do ramo. (Abomino a expressão “maratonar”, mas o que posso fazer? Por isso usei as aspas, para expressar meu desagrado.) Grande porcaria. Neste caso, não gosto do avanço tecnológico. Sonho com o retorno messiânico das locadoras. Antes que vocês digam que sou um retrógrado intransigente, rebato dizendo que gosto mais do DVD do que da fita de videocassete. Esta última, depois de um tempo, enrolava no aparelho. Arrumar aquilo era um horror.
É, minha gente, o ser humano é chato pra caramba. Um eterno reclamão.