Buscar no Cruzeiro

Buscar

Nelson Fonseca Neto

Uma lasca da vida contemporânea

29 de Julho de 2022 às 00:01
Cruzeiro do Sul [email protected]
placeholder
placeholder

 

Entre 2001 e 2020, fui um sedentário convicto. Também abri mão de qualquer controle na minha alimentação. Claro que a balança acusou o resultado. Digo essas coisas para você perceber que fiquei muito tempo afastado do mundo fitness. Este não é um texto edificante, motivacional, com histórias de superação.

Em setembro de 2020, entrei num regime brabo. Perdi muito peso sem fazer atividade física. Foi um sacrifício horrendo. Desaconselho enfaticamente. Mas tenho uma justificativa: seria imprudente retomar os exercícios sem avaliação médica. Adiei o processo por alguns meses. Até que, no começo deste ano, recebi o sinal verde para ter uma gloriosa rotina ativa. Comecei com caminhadas, avancei para a bicicleta ergométrica, e hoje não faço feio nas corridas na esteira. Ou seja: voltei para o mundo fitness.

Eu mentiria se dissesse que tudo é espinhoso nessa retomada das atividades físicas. Existe, aqui, o óbvio: a gente fica meio felizinho depois de suar bastante. Nem entro nos detalhes de como as coisas do cotidiano tornaram-se bem mais fáceis. Subir escadas é um bom exemplo.

Eu também mentiria se dissesse que tudo é florido nessa retomada das atividades físicas. Confesso minha dificuldade em lidar com pessoas que ficam se olhando longamente no espelho da academia. Sei lá se isso é loucura minha. Mas seu eu pensar bem, é ninharia. Há coisas mais sérias no mundo das academias. Daqui em diante, este texto vai ganhando tons sociológicos.

Quero falar sobre o frequencímetro. Ele simboliza muita coisa. O frequencímetro é um relógio cuja função principal é medir a frequência cardíaca de quem o usa. Não é o caso de menosprezar o frequencímetro. Monitorar a frequência cardíaca melhora os resultados do treino e evita perigos. O problema é que um frequencímetro não é apenas um frequencímetro. E é aí que ele vira símbolo da vida contemporânea.

Meu frequencímetro está na camada intermediária na hierarquia dos frequencímetros. Não é baratinho. Não é um roubo. Tem várias funções. Essas coisas. Se você não é versado em frequencímetros, saiba que o aparelhinho, para funcionar bem, precisa da ajuda de um aplicativo. Você, ingenuamente, compra algo que deveria ser um relógio um pouco mais sofisticado e acaba lidando com a apologia da vida planificada.

É que, no aplicativo do frequencímetro, tudo pode ser transformado em gráficos e metas. Você estabelece metas de treinamentos. Você consegue armazenar todos os treinos para acompanhar sua evolução. Tudo fica com aquela cara de apresentação na reunião da firma. Como se eu um amador, um cara que apenas voltou a fazer atividades físicas fosse um atleta de alta performance. Aí eu olho ao meu redor e noto muita gente misturando whey protein na garrafinha com água. Noto que os suplementos vão dominando farmácias e supermercados. Noto um monte de vídeos com dicas de exercícios eficazes. É só olhar para essas coisas todas para constatar que vão longe os tempos da simplicidade do exercício físico. Não vou, aqui, dizer que eram bem melhor correr usando tênis com solas fininhas que arrebentavam joelhos e tornozelos. Estou longe de romantizar a situação em que o sujeito, do nada, bota uma bermuda e camiseta e sai trotando por aí sem qualquer cuidado médico e nutricional. O lance é o seguinte: precisa tudo ser tão controladinho, tão milimétrico, tão rigoroso assim?

Olha só que coisa mais louca: posso dormir com o frequencímetro no pulso e ele avalia a qualidade do meu sono. Num dia mais preguiçoso, meu frequencímetro emite sinais de irritação. Não estou sendo poético: ele realmente vibra irritado. Ele está, do jeito dele, dizendo para eu me mexer. Quando eu me mexo mais, meu frequencímetro vibra parabenizando. Ou seja: comprei um frequencímetro e acabei levando um chefe portátil.

[email protected]