Nelson Fonseca Neto
Escrever a vida
Cadê as biografias parrudas de um Guimarães Rosa, de um Graciliano Ramos, de um Manuel Bandeira?
Já tive minha fase de ler avidamente romances. Aprendi muito com eles. Tanto, que sou defensor da tese de que os romances são fundamentais para a educação do sujeito. Noutro dia falo melhor a respeito.
Seria exagero dizer que abandonei os romances. Eu diria que meus interesses estão mais ecléticos. Leio, com muito prazer, biografias. Já faz alguns anos que isso acontece.
É possível dizer se o mercado editorial de um país é maduro ou não? Tem gente que evita responder, com medo de emitir opiniões polêmicas. Eu, por preguiça, costumo evitar as discussões. Só que aqui eu cravo o seguinte: o mercado editorial brasileiro fortaleceu-se muito nas últimas décadas.
O cenário é complexo. Podemos melhorar, e muito, o ambiente de formação de leitores. É uma vergonha que muita gente veja as bibliotecas como firulas. Não é apenas uma vergonha: é o desastre na próxima curva. A fatura sempre chega. Já chegou, na verdade.
Quando falo da evolução do mercado editorial brasileiro, olho com mais atenção para os títulos publicados nos últimos anos. Várias editoras pequenas vêm batendo um bolão, com lançamentos muito bem produzidos. Um exemplo dos mais notáveis, ainda que de uma editora que não é pequena: a tradução, direta do russo, da ficção completa de Dostoiévski, pela Editora 34. Não é pouca coisa.
Sempre achei que um bom índice para avaliar a saúde do mercado editorial de um país é a quantidade de boas biografias circulando na praça. Escrever uma biografia é uma jornada exaustiva. E pouco recompensadora por aqui. Pense na quantidade de pratos que um biógrafo deve equilibrar ao mesmo tempo. Entrevistas, leitura de documentos, preenchimento de brechas, contextualização. E o estilo, claro. A biografia não pode ser uma chatice, um porre.
Bem se vê que escrever uma biografia demanda tempo e dinheiro. Anos e anos de dedicação exclusiva. Quantas editoras podem remunerar adequadamente por esse tempo todo? Poucas. O universo das biografias é altamente dependente da grana. Não é à toa que nos EUA abundam livrões sobre figuras de não muito destaque. Eles podem fazer essas estripulias numa boa.
E por aqui? Cadê as biografias parrudas de um Guimarães Rosa, de um Graciliano Ramos, de um Manuel Bandeira? Olha que estou falando dos medalhões da literatura. Deu para sentir o drama?
Mas não quero passar a impressão de que temos terra arrasada por aqui. Há várias biografias primorosas. Lamento não fazer uma lista ampla neste espaço. Vou tratar de alguns exemplos.
Os anos de 1994 e 1995 foram gloriosos para a biografia no Brasil. Anos das publicações de dois monumentos do gênero: “Chatô: o rei do Brasil”, de Fernando Morais, e “Estrela Solitária”, de Ruy Castro. O mundo da não ficção nunca mais foi o mesmo.
Sou suspeito para falar dos dois livros. São duas das minhas paixões de leitor. Mais: tratam de jornalismo e de futebol, assuntos que acompanho com fervor. Assis Chateaubriand e Garrincha. Dois gênios.
Leio Fernando Morais e Ruy Castro e me deparo com homens de múltiplos talentos. Paciência. Rigor na apuração. Teimosia. Tenacidade. Graça. Versatilidade. Criatividade. São por que não? romancistas da verdade. E de brinde os leitores levam aulas espetaculares de histórias que formam o Brasil.
Fernando Morais e Ruy Castro desbravaram o caminho para muita gente boa. Mario Magalhães. Lira Neto. Karla Monteiro. Pessoas que provam o seguinte: a leitura de boas biografias é uma das formas felizes de passar o tempo.