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Nelson Fonseca Neto

Barba desenhada

24 de Junho de 2022 às 00:01
Cruzeiro do Sul [email protected]
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Minhas duas grandes frustrações: não saber desenhar e não ter barba uniforme. Às vezes penso em como a minha vida seria se eu soubesse desenhar. Acho que eu seria autor de HQ. É um chute.

Fui uma criança CDF. Naquela época nossos pais compravam em janeiro o material que seria usado ao longo do ano letivo. Um dos cômodos do nosso apartamento, lá pela segunda quinzena de janeiro, era tomado pelas sacolas da papelaria. Cadernos, estojos, compassos, canetas, pastas, lápis, mochilas e livros didáticos.

Por mais que gostássemos das férias, aqueles dias de janeiro carregavam algumas horas que precisavam ser preenchidas com criatividade. Rebuscada maneira de descrever a palavra “tédio”. Acordávamos tarde nas férias, no meio da manhã. Futebol, só à tarde. Ou seja: pouco antes do almoço e logo depois dele, a gente tinha que se virar. Não eram tempos de internet. Eu era meio grande para ver o programa da Xuxa. Acho que passava o programa da Ofélia no outro canal. Vão sentindo o drama.

Por que eu dei essa volta toda mesmo? Ah, pra dizer que eu era CDF. Naquelas horas de marasmo em janeiro, eu lia os livros que seriam usados ao longo daquele ano. Lia e gostava.

Eu só emperrava em “educação artística”. Minha mãe que o diga. Ela, muito talentosa nas artes plásticas e nos desenhos geométricos, dava uma força perto das provas ou quando havia um trabalho valendo nota. Santa paciência a dela. Tinha de lidar com um jovem histérico, personagem de ópera. Faz tempo que não tenho esses rompantes. Alguma coisa a gente acaba aprendendo, não?

(Um alerta: farei uma mudança brusca de assunto aqui. Sempre falo para os meus alunos: cuidado com a transição entre parágrafos na dissertação. Só que aqui não é uma dissertação. Isto é uma crônica. Assim, posso fazer minhas estripulias. Bom, chega. Voltemos àquilo que importa.)

Sobre não ter barba uniforme: exagero dizer “grande frustração”. Fiz isso no primeiro parágrafo e não vou lá arrumar. Que fique registrado o exemplo de como vivemos na era da hipérbole.

Eu diria que a relação que tenho com a minha barba é exemplar de como o ser humano tende a lidar mal com a realidade frustrante. É que a minha barba cresce do mesmo jeito ao longo de mais de vinte anos. Farta e grossa em alguns pontos; ralinha em vários outros. Muitas vezes deixei crescer por cinco, seis semanas. Meu rosto fica parecendo um campo de futebol abandonado. Faço a barba prometendo nunca mais deixar os fios em evidência. Aí eu esqueço e volto a alimentar a esperança de ostentar uma barbona. Dá-lhe Sísifo!

Por ter a barba temperamental, não sou frequentador das barbearias que abundam na cidade. Sei que elas estão na moda. Vejo cartazes. Vejo anúncios na internet. Muitos desses estabelecimentos tentam reproduzir um certo clima de sul dos EUA. Pelo menos é o que eu noto assim meio de longe. Vai ver não é bem assim. Sei lá.

Entro na farmácia e vejo que os produtos relacionados aos cuidados com a barba vêm ocupando mais espaço a cada semana. Pomadas, pentinhos, tesourinhas, loções. (Uma questão secundária aqui: a partir de quando as farmácias passaram a ter essa cara de loja que vende de tudo um pouco? Não é crítica, não é nostalgia, é só uma pergunta mesmo.) Não gasto muito tempo olhando. É meio frustrante.

Se vocês me derem licença, vou logo ali no quarto, com a minha gloriosa barba estropiada, desenhar bonequinhos com formato de palito andando num jardinzinho, com uma casinha ao fundo e um sol sorridente no canto superior esquerdo.

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