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Nelson Fonseca Neto

Tec-tec

03 de Junho de 2022 às 00:01
Cruzeiro do Sul [email protected]
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Passei boa parte da minha vida no pedaço mais baixo da rua da Penha. Quarteirão entre a Padre Luiz e a Benedito Pires. Bem se vê que estou falando da parte frenética dessa rua que corta vários quarteirões. Nada contra a parte alta, um pouco mais tranquila. Já falei sobre isso semanas atrás.

No prédio onde morávamos tinha uma sacada que permitia ótima visão da escola de datilografia. Essa escola de datilografia ficava bem na frente de um restaurante muito conhecido, o “Jardim Tropical”. A escola e o restaurante que eu conseguia ver da sacada são dois dos lugares mais arrebatadores que já conheci. Há quem diga que uma vida plena deve ser marcada por viagens. Não estou aqui para discordar.

É aquela conhecida história de entrar em contato com outras culturas. Sou professor e sempre afirmo que tocamos melhor o barco quando conhecemos as várias maneiras de enxergar as coisas. Isso é cultura. O problema é que eu não gosto de viajar. Nunca gostei. Admiro quem gosta. Não fico tirando sarro dos que têm rodinhas nos pés. Eu simplesmente não gosto de viajar. E tendo um temperamento desses, eu aprendi a viajar sem sair do lugar. A vida tem dessas coisas.

Mecanismo de compensação? Acho que sim. Sedentários como eu acabam transformando miudezas em monumentos. É esperado que seja assim. Se não vou ao Coliseu, preciso transformar o boteco da esquina em algo que merece ser visto. Nessa brincadeira a gente acaba virando cronista. Escrever crônica não é, entre outras coisas, mirar o holofote naquilo que está meio escondido?

Um dia eu falo do “Jardim Tropical”. Frequentei aquele restaurante quando eu era bem criança. Preciso organizar melhor as imagens. Preciso ir, mentalmente, com mais paixão, àquele lugar. Essas coisas eu costumo fazer um pouco antes de dormir. Perambulo pelos lugares da infância e da adolescência. Reconstituo, preencho brechas. E invento. Relembrar é inventar. As imagens da escola de datilografia são mais nítidas. Era um estabelecimento de muito prestígio a cidade. Muita gente estudara lá. Durante alguns anos da infância passei na frente do estabelecimento, sem entrar. Aquilo era mundo dos jovens e adultos. Eu gostava de ouvir as teclas e os sininhos das máquinas. Da rua, eu percebia que havia a sala maior, parecendo uma sala de aula tradicional, e a sala menor no piso superior, coisa de dois ou três degraus acima.

Ter 44 anos em 2022 não é fácil. Sem digressões sociológicas, eu diria que a minha geração tem um pé em cada canoa. Parte importante de nossa vida se passou no mundo analógico. Outra parte, a atual, chafurda no lodo digital. Às vezes a gente fica meio perdido mesmo. Nostalgia feroz e falta de habilidade nas redes sociais são os sintomas mais evidentes. Tentem nos entender.

Hoje a gente tem de lidar com um cenário repleto de influenciadores que surgem do nada, empreendedorismo, bilionários malucos, bitcoin, jovens que são astros nas finanças etc. É uma carga pesada. A minha geração é mais vulnerável.

Éramos adolescentes na época das escolas de datilografia. Os adultos diziam que um bom curso de datilografia era o caminho do sucesso. Eu cheguei a fazer curso de datilografia por algumas semanas. (Um dia eu conto melhor os momentos de meditação naquelas aulas. Foram experiências místicas.)

A gente acreditou na conversa dos adultos. Só que aí aconteceu um negócio chamado “realidade”. Ser bom em datilografia não era suficiente. Só passou a servir para animar conversas nostálgicas na varanda gourmet. A História foi meio estelionatária com a minha geração. Isso que não estou indo a fundo nos cursos de Word e Excel. Não adianta reclamar. O que importa é que tive a chance de morar perto de uma escola de datilografia e frequentá-la por um tempo. Sou uma nulidade em empreendedorismo, mas sei conversar sobre as apostilas do curso de datilografia e sobre o filé à cubana do “Jardim Tropical”. Cada um se defende como pode.

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