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Nelson Fonseca Neto

As bobeiras do andarilho

Tudo o que pensei naqueles minutos está registrado no famoso caderninho. Sei que aquelas palavras não renderão algo mais significativo. Não importa

27 de Maio de 2022 às 00:01
Cruzeiro do Sul [email protected]
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Rubem Fonseca e Dalton Trevisan são exemplos de escritores andarilhos. Muitos de seus contos têm como ponto de partida observações feitas nas andanças. Ali ouvimos as conversas das esquinas, os murmúrios na fila da padaria, os dramas nos ônibus.

Observar e escrever. Joan Didion, grande ensaísta dos EUA, dizia que escrever é trair. Na observação a gente acaba se apropriando do que é observado. Tudo piora quando o que é apropriado aparece registrado no papel. É preciso ter cuidado com os escritores. Traidor, vampiro, são vários os rótulos. O que importa: não há literatura sem observação.

Não posso bater no peito e dizer que conheço profundamente a minha cidade. Sou muito mais familiarizado com a região central e suas adjacências. Pudera, sempre morei por aqui.

O que guia os nossos pensamentos na hora de caminhar? Não estou falando dos deslocamentos por obrigação. Falo das caminhadas livres, soltas, lúdicas. A pergunta não é tola. Vou tentar explicar.

Já fiz caminhadas que renderam zero de material para textos. O horário influencia? O itinerário? O que comi minutos antes de sair de casa? Muitas perguntas desse quilate. E já fiz caminhadas que renderam assuntos para uns dez textos. Nessas horas, eu gravava uns áudios meio malucos e ofegantes no meu celular. Eu não podia deixar aquela euforia criativa passar sem registro. Depois, em casa, eu anotava a bagunça.

Não é o caso de esmiuçar aqui as caminhadas que nada renderam. “Renderam”. Reconheço que o verbo pertence mais ao contexto do mercado financeiro. Peço perdão. Não consigo encontrar outro melhor neste momento. Melhor falar de um exemplo de caminhada produtiva. “Produtiva”. Mais uma palavra fora do contexto. Vou deixar assim mesmo. O leitor compreenderá.

Uns dois meses atrás, eu batia perna pelas travessas da Eugênio Salerno. Não foi do nada que fui parar ali. Eu estava em busca de subidas íngremes que pudessem melhorar meu condicionamento físico. Passei a reparar nas casas à esquerda e à direita.

Quem é de Sorocaba sabe que aquela região abrigou várias das mansões de maior destaque na cidade nos anos 60 e 70. Muitas daquelas casas tornaram-se clínicas que abrigam vários médicos. Outras casas foram demolidas e deram lugar a prédios. Também há casas que continuam ali, firmes e fortes, como, vejam só, residências.

Como sempre, a gente acaba encontrando de tudo um pouco nesta vida. Ali eu me deparei com casas que passaram por reformas radicais, preservandoum discreto traço do projeto original. Há casas que passaram por retoques menos drásticos, ganhando ares de velhice solene. E há casas abandonadas. Eu quero falar mais um pouco dessas últimas.

Uma delas me obrigou a ir e voltar umas dez vezes pela rua. Certamente ela foi erguida no final dos anos 60. Vou além: ela simbolizava o que havia de mais moderno em termos arquitetônicos. Fico pensando no choque que causou na época em que foi construída. Muita gente deve ter passado por ali para admirar ou criticar.

Eu realmente não sei quem morou ali. Não tentei descobrir. É que estragaria minha imaginação. Eu criei uma família para aquela casa. Pensei em muitos detalhes. O que cada membro da família fazia, como eram os temperamentos, essas coisas. Pensei numa festa fracassada ali. Pensei em cenas grotescas e horripilantes. Depois coloquei as coisas num trilho mais realista. Várias gerações foram desfilando na minha cabeça. Foi um momento, reconheço, bem Érico Veríssimo.

Tudo o que pensei naqueles minutos está registrado no famoso caderninho. Sei que aquelas palavras não renderão algo mais significativo. Não importa.

Dando uma de Bob Dylan de araque, eu diria que o que conta não é o destino: é a viagem. É andar por aí, livre, a cabeça aberta para as besteiras boas da vida. É uma boa forma de passar o tempo. Recomendo avidamente.

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