Nelson Fonseca Neto
Sem medo
Na época do ensino médio eu sentava no fundo da classe. Quando as aulas eram aborrecidas, eu ficava desenhando campinhos de futebol com os nomes dos jogadores do São Paulo. Eram centenas de variações táticas. Em alguns momentos, o Cafu era ponta-direita; em outros, volante. Isso foi no início dos anos 90. Muitas folhas de caderno foram preenchidas dessa maneira. Era uma boa forma de passar o tempo. Como eu ficava na minha, nunca levei bronca.
Naquela época a gente não tinha muitas armas contra o tédio. Hoje sou professor no ensino médio e digo aos meus alunos que eu não sei como me comportaria se tivesse acesso, na minha adolescência, às coisas que eles têm hoje. Não é populismo de professor tentando ser gente boa. Estou suavizando as coisas quando digo que não sei como me comportaria se tivesse acesso, no início dos anos 90, às coisas que a moçada tem hoje. Digo aqui, sem receio: eu teria sérios problemas para acompanhar uma aula.
Meu irmão e eu gostávamos de videogames. Gostávamos bastante, eu diria. Mas os jogos daquela época ficavam repetitivos depois de algum tempo. Tente jogar um cartucho de Atari por mais de uma hora. Tente ficar num jogo do Nintendinho por mais de duas horas. Então fazíamos outras coisas. Não porque éramos crianças evoluídas: simplesmente os jogos ficavam chatos depois de algum tempo.
O lance do campinho desenhado no caderno só rolava porque a gente não tinha celular. Digo isso porque muita gente da minha idade aponta o dedo implacável pra moçada e seus celulares. Como se as crianças de antigamente fossem monumentos de equilíbrio e discernimento. Nada disso. Nós apenas não tínhamos celulares. Então não tem como ficar comparando. Mais: é sacanagem ficar comparando.
Para além do passatempo, tem, nessa história toda, algo bem mais complicado. Como eu disse algumas linhas atrás, sou professor. Não ouvi falar de certas coisas: eu vejo essas coisas todos os dias. O que descreverei não é exagero. Zero teor de ficção.
Primeira cena. Alunos mexendo nos celulares. Estão vendo aplicativos de investimentos em bolsas de valores. Falam com desenvoltura de coisas intrincadas ligadas ao mercado financeiro. Não vou entrar na avaliação se isso é bom ou ruim. Simplesmente está acontecendo.
Segunda cena. O aluno X aponta para o aluno Y e diz que ele é influenciador e tem milhares de seguidores. Aí outros alunos começam a falar de influenciadores sobre os quais nunca ouvi dizer. Meus alunos descrevem as façanhas desses influenciadores. Não vou entrar na avaliação se isso é bom ou ruim. Simplesmente está acontecendo.
Agora eu preciso contar uma coisa que aconteceu comigo recentemente. Já faz algumas semanas que venho treinando diariamente na academia do clube. Um percentual alto dos frequentadores circulando com fones de ouvido. Minha veia analógica apontava o dedo e dizia: que deselegância! Eu tinha essa opinião até o momento de arriscar correr na esteira. (Alguém poderia dizer que é bem mais legal correr ao ar livre. Quem sou eu para discordar? O drama é que eu sou míope pra caramba, e meus óculos ficam escorregando quando o rosto estampa aquela lustrosa camada de suor. Nossas ruas e calçadas foram concebidas por algum espírito brincalhão e sádico que vibra com os sustos e tombos dos pedestres. Tenho criança pequena em casa. Quero chegar inteiro.) Quem corre na esteira sabe que o grande inimigo é o tédio. A gente fica olhando para aqueles numerinhos vermelhos a cada cinco segundos. Decidi usar fones de ouvidos e acompanhar alguns podcasts enquanto corro. Tem sido muito bom.
Ouvi uns podcasts de literatura. Só coisa fina. Um deles tratava da vida e obra de Rubem Fonseca. Enquanto eu derretia na corrida, ouvia estudiosos falando coisas muito interessantes sobre um dos meus escritores preferidos. Agora entendo quando dizem que podcast vicia. Podcast. Na minha época de adolescente não tinha podcast. Muitos dos meus alunos são fominhas de podcasts. Aprendem, ali, coisas importantes. Tem um monte de besteira rolando também, mas é do jogo.
Eu vejo essas coisas todas que estão ao alcance da moçada e penso nos desafios monumentais da escola. Não são pensamentos trágicos. Não são mesmo. Acho que são realistas. Nem nos sonhos mais retrógrados os alunos ficam, hoje, desenhando campinhos no fundo da sala. O senso de realidade não soterra os ideais. Quem se preocupa com educação nunca pode perder isso de vista.