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Nelson Fonseca Neto

Eternamente crianças

22 de Abril de 2022 às 00:01
Cruzeiro do Sul [email protected]
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Juro que pensei, para a coluna desta semana, num texto mais sério. Minha ideia: despertar uma sensível reflexão nos leitores. Não dá para ficar apenas nas palhaçadas por aqui. Meu inseparável e caótico caderninho já carregava a semente do texto mais sério. Bastaria sentar diante da escrivaninha e desenrolar a coisa.

Eu trabalharia no texto no sábado ou no domingo. Seria interessante variar um pouco no jeitão da coluna. Reparei que eu estava gracioso demais nas últimas semanas. Meu medo era que os leitores enjoassem das futilidades do cotidiano que venho trazendo por aqui. Amendoim é bom pra beliscar numa tertúlia com amigos, mas não pode ser servido o tempo todo. O miúdo nunca substitui o substancioso. É assim que eu penso.

Só que eu não sou um eremita. Eu ia escrever “infelizmente não sou um eremita”, mas aí seria botar banca demais. Não quero ser eremita. Melhor seria dizer: “o mundo das abobrinhas é implacável, crudelíssimo, e não deixa o cidadão desenvolver pensamentos maduros e profundos”. Na prática, o que aconteceu comigo foi simples: o texto sóbrio estava no gatilho, aí eu recebi uma mensagem da operadora do meu telefone celular: “O aplicativo X está com saudade de você”.

A singela mensagem merece ser repetida num parágrafo novo: “O aplicativo X está com saudade de você”. O aplicativo é uma invenção demoníaca. Você tem que ter aplicativo pra tudo: farmácia, banco, operadora de telefonia celular, quitanda, hipermercado, doceria etc. Como tudo pode piorar é uma lei da natureza -, os aplicativos ficam mandando mensagens sem parar.

Não são mensagens sisudas. Antes fossem sisudas. São textos descolados, engraçadinhos, joviais. Textos que devem supor que a minha vida é árida e que eu precise de amiguinhos legaizinhos para levantar o meu astral. Pô, eu tenho 44 anos na lomba! Já passei dessa fase.

Aí, não tem jeito: uma coisa puxa outra. Eu não deveria me surpreender com essas mensagens. Já faz tempo que o mundo vem sinalizando que o lance é ser meio criança. Sabe aquela história de ser espontâneo, felizão, faminto pelo prazer que aguarda na próxima curva? Pois então.

Eu já disse aqui, sei lá quando, e volto a dizer: não encrenco com aspectos do vestuário, por exemplo. Vou ao meu trabalho vestindo camiseta, calças jeans e tênis. Acho ótimo que as coisas sejam assim. Também não encrenco com a linguagem mais direta em determinadas circunstâncias. (Evito os palavrões em público, mas isso é questão de foro íntimo.) O que pega, pra mim, é a mentalidade infantil em gente adulta.

Machado de Assis disse que a criança é o pai do homem. É verdade, mas devemos ter cuidado com o exagero, com a coisa meio aloprada. Muito do temperamento de um adulto é forjado na infância. Isso é óbvio. Mas é saudável que a infância seja superada na... infância. Que os tenros anos sejam um tesouro pra nossa memória. Essas coisas, enfim. Como diz o sábio: a fila anda.

Essa parada frenética de todos os desejos serem atendidos rapidamente é que é bizarra pra caramba. Criança é que tem dificuldade pra lidar com certas frustrações. Usamos “birra” pra falarmos de ... crianças. Vejam só. De crianças. E não de um marmanjo que chora as pitangas porque não conseguirá, neste ano, fazer aquela viagem “top”. E não do sujeito que não conseguiu ir ao churrasco dos amigos nesta semana.

Muitas empresas sacaram o esquema e dão corda pra esse pessoal infantilizado. Pô, empresas, facilitem! As coisas já estão bem complicadas. A gente já tem que sair por aí e trombar com uns caras brincando de carrinho com um Mustang de verdade. A gente já tem que sair por aí e trombar com uns caras possuídos pelo capeta porque o café pedido na padaria veio sem a quantidade certa de creme.

Uma dica para as empresas: em vez de “o aplicativo X está com saudade de você”, usem “se você quiser, entre no aplicativo X”. Sei lá. Melhor sem qualquer mensagem, mas aí seria pedir muito. Devemos calibrar nossas utopias.

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