Nelson Fonseca Neto
Ostentar
Ninguém passa batido por uma rotina de horas e horas de vídeos de ostentação protagonizados por figuras sinistras
Conhecem a construção “de onde eu venho, tal coisa funciona assim e assado”? Diz respeito a lugar; diz respeito a tempo. Normalmente, o “de onde eu venho” serve para marcar território, para mostrarmos nossa superioridade diante de algo diferente, de algo que nos incomoda.
O campo dos costumes é fértil para esses choques. Desde que o mundo é mundo as coisas funcionam assim. É clássica a situação na qual o sujeito mais velho espinafra o jeitão do carinha mais moço. Isso aparece em Homero, Cervantes, Machado de Assis etc. Adoramos dizer que vivemos a decadência. É o apocalipse nos aguardando na próxima curva.
Gastei os dois primeiros parágrafos tentando mostrar que sou um cara ponderado, que não sai por aí berrando suas convicções raivosas. Muito bem. Palmas para ele. Agora entra em cena uma faceta minha mais passional. Sempre bom lembrar: Dr.Jekyll e Mr.Hide nos ajudam a entender muita coisa. Daqui em diante, o cronista civilizado sai para dar uma volta.
De onde eu venho, ostentação sempre foi algo tremendamente cafona. Havia um pudor na hora de se falar em riqueza, patrimônio e essa papagaiada toda. Não me lembro -- na minha vida de criança, adolescente e adulto jovem -- de ter conhecido pessoas que ficavam alardeando suas posses. Quando muito, ouvia falar de alguém que era meio inadequado nesse quesito.
(Não sou ingênuo, vocês também não o são: de onde eu venho, havia injustiça e ganância. Só que tudo eram muito mais velado. Eis o ponto.)
Hoje eu leio um site de notícias e me deparo com figuras como: a cantora gospel envolvida em escândalo de pirâmide financeira; a Rainha do Reboque, craque na arte do calote; o influenciador que promovia bingos ilegais cujos prêmios eram carros de luxo. Em comum: pessoas que ostentavam gostosamente, em vídeos, artigos caríssimos. Importante e trágico: figuras com milhões de seguidores.
Sem querer ofender: quem é fã da Rainha do Reboque? É duro, muito duro, ter imaginação fértil. Fico pensando nos tais seguidores. Onde moram? Como vivem? Quais lugares frequentam? Essas abobrinhas típicas de quem deveria pensar em coisas mais importantes. Juro que eu tento, mas não consigo. Os seguidores desses influenciadores são espectros que rondam a minha vida.
Antes que colem o rótulo de “ranzinza” em mim: aplaudo com entusiasmo várias das mudanças tecnológicas dos últimos anos. Puxa vida, sempre vejo vídeos no YouTube. Tudo bem, são vídeos antigos de jogos de futebol ou de debates esportivos dos anos 80. Mas é no YouTube, então até que eu sou antenado.
O que pega pra mim, repito, é esse lance da cafonice da ostentação. Aí, minha gente, eu empaco mesmo. De onde eu venho, um relógio é um relógio. Eu posso até achá-lo bonito, mas não consigo transformá-lo em símbolo que revela como eu sou um cara sensacional. E seria o fim da picada desejar que as pessoas ficassem interessadas e me seguissem por causa disso.
(Aqui, perdoem, sou pessimista pra caramba: essas coisas nunca terminam bem. Antes que vocês achem que tenho o nariz empinado, quero me defender: gosto de ver bobagens. Mas não o tempo todo. A analogia tosca: se eu só comer porcaria, meu corpo sente. Serve a mesma coisa para o espírito? Acredito que sim. Ninguém passa batido por uma rotina de horas e horas de vídeos de ostentação protagonizados por figuras sinistras.)
De onde eu venho, o cara que ficava exibindo o carrão era merecidamente ridicularizado. De onde eu venho, a gente tinha mais recato. E isso faz uma diferença danada.