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Nelson Fonseca Neto

Santo caderninho

Já vi escritor que só recorre a palavras sucintas, telegráficas, em seu caderninho. Eu diria que são palavras urgentes

01 de Abril de 2022 às 00:01
Cruzeiro do Sul [email protected]
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Nelson Fonseca Neto

Você já deve ter visto em algum filme: o escritor com o caderninho de anotações. Normalmente a cena ocorre num café. Enquanto os outros clientes tagarelam, o escritor anota, concentrado, suas ideias no caderninho. O que ele escreve ali?

Como diria o sábio: cada caso é um caso. Há anotadores e anotadores. Já vi escritor que só recorre a palavras sucintas, telegráficas, em seu caderninho. Eu diria que são palavras urgentes. Seria uma lástima perder a ideia X ou Y. Depois, quem sabe, a coisa ganha corpo. Ler esse tipo de anotação é uma aventura. Necessário que o autor daquelas palavras esteja perto para traduzi-las.

Há, também, os anotadores mais minuciosos. Nada de garranchos ou diagramas enxutos. A letra é caprichada, e o texto tem cara de texto: marcação de parágrafos, vírgulas nos devidos lugares, nada de abreviações. Quem anota desse jeito não acredita que a escrita deva seguir muitas etapas. Quando muito, um ou outro ajuste na hora de passar a limpo.

Ao longo destes anos todos, tive muitos caderninhos e agendas. Não sou um anotador disciplinado. Sou refém das fases. Tem época em que as anotações cobrem centenas de páginas. E há longos períodos de páginas em branco. Bem que eu tentei, tempos atrás, estudar a razão do meu comportamento. Desisti. Outros pensamentos mais importantes foram surgindo. A vida é assim.

Dei esta volta toda para dizer que estou vivendo um momento mais intenso de anotações. Interessante como os meios influenciam os fins. Por muito tempo, eu escrevi esta coluna diretamente no computador. De umas semanas para cá, venho escrevendo a primeira versão do texto no caderninho. Tenho gostado disso. O caderninho dá mais agilidade ao processo. As palavras vêm com mais fluência. Às vezes, o lampejo surge quanto estou com a Patrícia e o João Pedro na sala aqui de casa. Seria muito trabalhoso ir até o escritório e ligar o notebook. Nessas horas, boas ideias acabam morrendo.

Não uso o caderninho apenas como rascunho para os textos do jornal. Olhando para as páginas mais recentes, encontro ideias para contos ou romances, observações corriqueiras, reflexões graves, esboços de cenas, anotações para as aulas. Tudo junto. Quando muito, um título com letras um pouco maiores para que eu não me perca.

Acho que a atual fase anotadora é responsável pelo meu crescente interesse por diários. Tenho lido alguns dos mais famosos nos últimos dias: Helena Morley, Mark Twain, Viktor Klemperer, Norman Lewis etc. Admiro profundamente essa turma. Textos notáveis e uma disciplina feroz para manter o ritmo. Viktor Klemperer, professor universitário e judeu, escreveu seu monumental diário na Alemanha, nos anos 20, 30 e 40 do século 20.

Namoro com a ideia de escrever um diário, mas não sou constante. Assumo que sou volúvel. Empolgo-me fácil, desinteresso-me tão fácil quanto. Tentei me esquadrinhar. Tentei mudar. Não deu certo. Paciência. Cada um sabe do fardo que carrega.

De tudo o que escrevo no meu caderninho, tenho especial carinho pelas frases isoladas que pretendem ser sementes de coisas muito maiores. Sei que elas não frutificarão, mas estão ali, como registros da empolgação de quem as escreveu. Um exemplo: “O amor pelos livros anula as habilidades manuais?”

É que me incomoda não saber usar direito, até hoje, uma chave de fenda.

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