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Letra Viva

Como vivemos

Artigo escrito por Nelson Fonseca Neto

24 de Dezembro de 2021 às 00:01
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Vocês sabem que sou professor de redação. Aulas particulares e aulas na escola. Muitos dos meus alunos estão preocupados com vestibulares. Até aqui, grande novidade. Tem muita gente fazendo o que eu faço.

Agora proponho algo um tanto absurdo a vocês, estimados leitores. Imaginem que eu decida inovar no meu trabalho. O exemplo que eu quero usar aqui é melhor para as aulas particulares. Imaginem que eu resolva abrir mão da abordagem tradicional que se escora na análise das características do aluno e na análise das características da prova que esse aluno queira encarar.

O jeito tradicional não tem muita firula. O professor vê como o aluno está escrevendo, detecta pontos fortes e pontos fracos e monta um plano de trabalho. Não tem glamour. Não tem professor declamando, comovido, poemas. Mas dá certo. É o arroz com feijão servido com dignidade.

Mas imaginem que eu tenha me cansado do jeito corriqueiro de trabalhar. Decido ousar nos temperos. Transformo as minhas aulas em algo misterioso, pomposo. Alugo uma sala comercial e capricho na decoração. Tudo retrô. Não pouco retrô: muito retrô. Nada de referências adolescentes aos anos 80 e 90. Miro os anos 40. Percorro antiquários. Gasto uma grana pesada em poltronas, mesinhas, escrivaninhas. Tudo para criar um clima para as minhas aulas de redação.

Mas não posso me limitar a superficialidades. Meu método precisa brilhar loucamente. Todos os passos devem revelar como sou revolucionário, genial, um mago das letras. Um aluno me procura. Marcamos a primeira conversa. No jeito tradicional, o papo é rápido. No jeito inovador, é uma performance.

Então a primeira conversa iria muito mais longe que as palavras de outrora. Claro que, na vida nova, eu pergunto quais vestibulares o aluno pretende prestar. Claro, também, que eu mapeio pontos fortes e pontos fracos. Mas isso ocupará uma parte mínima da performance. Investirei pesado em análises comportamentais. Farei perguntas sobre vários dos recantos da vida do aluno. É para o processo se arrastar por horas. É possível que eu precise de mais de um encontro para dar conta do recado.

Traçado o perfil, começamos o trabalho. Tudo será muito lúdico. Cada aspecto da escrita será encarado como um desafio de game. Deve ter ficado claro a vocês que, no jeito inovador, eu serei um sujeito diabolicamente antenado e sábio, cheio de pílulas de sabedoria para distribuir por aí. Eu e a torcida do Flamengo. Se eu sair agora aqui de casa e andar uns duzentos metros, encontrarei facilmente umas cinco pessoas inovadoras que farão um discurso em que, no terceiro minuto, surgirá a gloriosa construção “tem que pensar fora da caixinha”. “Fora da caixinha” é o leite Ninho do mundo das sobremesas. Tente achar um doce que não tenha leite Ninho.

É um alívio notar que temos tantos inovadores circulando pelas ruas brasileiras. Isso explica porque estamos vivendo tão bem. (Este parágrafo foi irônico.)

Chego ao final do texto de hoje e reconheço ter cometido um erro da calibragem na minha peça de retórica. Pensei em recorrer ao exemplo da aula de redação para abordar, com mais profundidade, uma marca do nosso tempo. Só que a ilustração ficou maior do que eu pretendia. Peço aos leitores que guardem a referência para a próxima semana.

Na última coluna do ano, tratarei de algo que vem me irritando sobremaneira. Até lá.

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