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Letra Viva

Ligando os pontos

Artigo escrito por Nelson Fonseca Neto

17 de Dezembro de 2021 às 00:01
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Nesta época, eu costumo fazer listas de recomendações de leituras. Parto do seguinte princípio: o cidadão terá, nos próximos dias, mais tempo para dedicar aos livros. Sou um otimista.

A lista deste ano já estava pronta. Bastaria adaptar um ponto aqui e outro ali, e pronto: a tarefa da semana estaria cumprida. Tal facilidade passou a me incomodar minutos depois. É que as listas de leituras já estão pipocando por aí. Minha contribuição cairia na mesmice. Sem contar que venho pensando numas coisas que desejo dividir com o leitor. Não é de bom alvitre deixar essas coisas mofando nos recantos da mente.

Na semana passada, eu disse que estava relendo algumas coisas do Dashiell Hammett. Mais: que o craque da literatura policial oferece, apesar do abismo no espaço e no tempo, uma lente poderosa para compreender o Brasil de hoje.

O que fiz, nos últimos dias, foi espichar o processo. Peguei alguns grandes autores de literatura policial e tentei encaixá-los na Sorocaba de hoje. O exercício intelectual tem razão de ser. Melhor, razões. Explico.

A primeira razão é de base. É a que sustenta tudo. Sou dos que acreditam que a boa literatura policial é grande arte. Grande arte que é indispensável para compreender alguns cenários. Eu poderia, aqui, mencionar vários nomes, mas seria exaustivo. Fiquemos com o que importa: a literatura policial é uma preciosa e deliciosa lente.

A segunda razão: romper com o lugar-comum. No caso da literatura policial, o lugar-comum é cravar que todos os livros dessa vertente têm a mesma pegada. Não podemos cometer essa besteira. Seria a mesma coisa que dizer que todos os romances do século XIX têm o mesmo jeitão.

Feitos os avisos, vamos ao que interessa. Sempre importante dizer que esses exercícios intelectuais de encaixe são simplificadores. O leitor fique à vontade para discordar.

Pensemos em Dashiell Hammett e em Raymond Chandler. Com razão, apontados como dois dos maiores escritores de literatura policial de todos os tempos. O problema é que, muitas vezes, são encarados como gêmeos siameses. Como se escrevessem sobre a mesma coisa usando o mesmo tom. A distância entre eles é enorme. Vou tentar ilustrar o meu ponto usando a nossa querida cidade como referência.

Hammett mirou em mais alvos. Foi mais diversificado. Tratou de mais camadas. Em seus contos e romances, encontramos a classe média, os ricos, os muito ricos e os pobres. Hammett escreveria sobre um condomínio de luxo, sobre o Cerrado, sobre o Campolim, sobre o Habiteto. O estilo anguloso e duro. Pense na dificuldade da empreitada.

Chandler, por esse ponto de vista, foi mais fechado. Fundamentalmente, suas histórias são protagonizadas pelos mais endinheirados. Pensando em Sorocaba, Chandler esmiuçaria os condomínios nas cercanias da cidade. O estilo mais fluido, quase poético.

Hammett e Chandler trabalham frequentemente com a figura do detetive particular. Mas nem só de Sam Spade e de Philip Marlowe vive a literatura policial. Uma seara rica é a que mostra a rotina da polícia oficial. Alguns nomes que merecem aplausos: Ian Rankin, Simenon, Ed McBain, Andrea Camilleri.

Maigret, personagem de Simenon, trabalharia forçando bastante a barra, já que as instituições francesas das primeiras décadas do século XX estão distantes das instituições brasileiras do século XXI na delegacia da General Carneiro e trataria dos mais diferentes problemas da nossa aprazível cidade. Montalbano, de Andrea Camilleri, daria expediente na delegacia e conheceria profundamente os bons restaurantes daqui.

Poderíamos ir longe com a coisa toda. Coloquei aqui uma pequena parte das minhas caraminholas. A gente fica viciado nessas coisas.

Claro que a mensagem neste momento é: Feliz Natal. Mas com um adendo: mergulhem fundo na literatura policial.

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