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Letra Viva

O astro (conto primeira parte)

Artigo escrito por Nelson Fonseca Neto

19 de Novembro de 2021 às 00:01
Cruzeiro do Sul [email protected]
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Faz tempo que eu reparo no seguinte: algumas profissões vão desaparecendo, enquanto outras -- muitas vezes típicas das ficções científicas mais bizarras -- vão surgindo. Acho que é assim desde que o mundo é mundo.

Inevitável pensar no cara que conserta relógios. Eu sei que ainda tem gente exercendo o ofício, mas é uma área que está em baixa. Não gosto de constatar coisas desse tipo. Sempre nutri simpatia por ocupações que demandam delicadeza e precisão. É uma forma de resistência. Sei lá, de vez em quando eu tenho as minhas maluquices. Mas avancemos.

Sou o exemplo perfeito de como a vida é dinâmica. Sou futurólogo. Nada a ver com misticismo e adjacências. Quero explicar como ganho a vida. Muita gente ignora a função social de gente como eu.

Acho improvável que alguém decida ser futurólogo na infância. Pode ser que eu diga isso porque a minha profissão é recente. Talvez, daqui alguns anos, a gente se depare com crianças novinhas dizendo que desejam ser futurólogas quando crescerem. Vai saber.

Quando criança, quis ser jogador de futebol, roqueiro e apresentador de televisão. Não sei dizer se muita gente é assediada pelos desejos que povoaram a minha infância. De qualquer forma, não vim aqui para escavar as motivações dos meus primeiros anos.

Importa, isso sim, mostrar que sou o que sou por conta de uma guinada na vida. Prometo que não será um relato edificante e meloso. Mas foi uma guinada. Nada de luz ofuscante ou de sonhos bizarros. Tudo se deu graças à boa e velha pindaíba.

Sou administrador de empresas. Escolhi a carreira sem grandes idealismos. Honestamente, sem qualquer tipo de idealismo. Zero mesmo. O comodismo deu as cartas. Muita gente próxima estava cursando ou tinha cursado administração de empresas. Havia um certo glamour no ar. Entrei no esquema.

Fiz estágio a partir do segundo ano de curso. Não fiz besteiras monumentais na empresa que me acolheu. Fui efetivado logo depois de ter concluído o curso. Fiz MBA porque todo mundo estava fazendo. Levei tanto a faculdade quanto o emprego com uma apatia monumental. As coisas só não foram piores porque sempre abominei os extremos. Impossível, portanto, bancar o esculachado e sair chutando o balde.

Juro que pensei que a vida era aquilo mesmo. Fui aprendendo a lidar com uma existência cinzenta. Era chato, mas era estável. Parece personagem de filme de quinta categoria, mas era verdade. Só que esse marasmo foi afetado por um velho conhecido: o desemprego. A empresa onde eu trabalhava foi atingida por uma das crises que afligem o Brasil. Fui demitido junto com centenas de outros colegas.

Antes de avançar pelo trilho principal da história, acho importante dizer que sempre gostei de ler. Comecei lá atrás, bem novinho, com os gibis. Depois fui pegando gosto pela coisa. Ao vinte e poucos anos, eu era admirado pelo meu repertório de leituras. Sempre fui fominha nesse quesito. Nunca fui de muitas frescuras. Li Balzac, Victor Hugo, Kafka, Machado de Assis. Mas li também muita coisa de filosofia e de sociologia. Sempre gostei dos relatos históricos e das biografias.

Em suma, eu era visto como um cara diferente. É que muita gente que trabalhava na minha área se empanturrava de livros que, supostamente, ensinavam o leitor a tocar a vida de modo eficaz. O resultado prometido: rios de dinheiro inundando a lavoura do sujeito. Sem querer me gabar, mas já me gabando, minhas conversas impressionavam mais do que a do cara que saía papagaiando a novidade daquela semana.

Ou seja: o meu gosto por bons livros teve um peso grande. Além disso, entrou a sorte. É que eu era amigo de algumas pessoas mais arrojadas em termos empresariais. Graças a elas a coisa deslanchou.

(Continua na próxima semana.)

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