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Letra Viva

A festa (Final)

Artigo escrito por Nelson Fonseca Neto

05 de Novembro de 2021 às 00:01
Cruzeiro do Sul [email protected]
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Nossa pequena história vai chegando ao seu final. Chegou a hora de contarmos a respeito da festa promovida pela família H. para inaugurar a mansão no condomínio mais rico da cidade.

No capítulo anterior, mencionamos que a construção da mansão foi uma terrível quebra na rotina ponderada da família H. A extravagância foi a reação aos que, na cidade, insistiam em lançar risinhos e olhares tortos àqueles que enriqueceram com o ofício de preparar pastéis sublimes.

Não é inédito o uso da construção civil para preencher lacunas intangíveis. Muitos mastodontes de concreto surgem para mostrar que os seus proprietários não estão para brincadeira. Funcionalidade, conforto e harmonia são jogados na latrina. Muitas vezes isso não é notado de imediato. É que o dinheiro ofusca, mesmo quando traz à tona a cafonice.

(Cafonice não é predicado automático da pobreza. Crer numa coisa dessas é um equívoco dos mais comuns.)

Se a família H. vivesse seu apogeu nos anos 60, a mansão seria erguida e a festa de inauguração aconteceria, é evidente. Seria nostalgia vazia acreditar que, em décadas passadas, todos eram exemplos de estoicismo. “Marcar território” sempre acompanhou e sempre acompanhará as ações humanas.

Dito isso, é inegável que nossa história é turbinada ao acontecer nos anos 2020. É chover no molhado dizer que, nos anos 60, não havia redes sociais para elevar a ostentação a patamares de ficção científica.

(Aguardamos, ardentemente, os estudos que mostrarão, de forma categórica, como muita gente tem, com o perdão da expressão vulgar, quebrado a cara ostentando carrões, relógios e viagens. Não é pequena a lista de golpistas que foram apanhados por conta do frenesi de mostrar o relógio de ouro num cenário de coqueiros, areia de uma brancura sobrenatural e mar azul, azul.)

Essa volta toda para dizer que a mansão da família T. desequilibrou as finanças de um modo tenebroso. Isso foi notado mais ou menos no meio do caminho. Impossível recuar. A família T. conhecia bem algumas obras interrompidas por falta de recurso. Deprimente olhar para as entranhas do que prometia ser algo suntuoso. A mansão seria concluída a todo custo.

Nossa história não teria sentido se disséssemos que a mansão não foi concluída. Foi, e representou, com o perdão da expressão desgastada, um tapa na cara da sociedade que insistia em fazer piadinha com o cheiro da fritura do pastel. Lembrando que o pastel permitiu a extravagância da mansão.

Teríamos recursos lexicais para a descrição minuciosa dos materiais que compuseram o luxo da mansão. Nomearíamos as madeiras dos balcões. Faríamos a epopeia da iluminação cinematográfica da sala de estar. Traríamos cifras relacionadas aos aparelhos eletrônicos. Seríamos capazes de estripulias descritivas típicas dos gloriosos romances do século XIX, mas este espaço exíguo não permite.

A mansão sem a festa seria algo manco. A festa foi feita. Centenas de pessoas foram convidadas. Também poderíamos escrever dezenas de páginas a respeito dos quitutes. O adjetivo “pantagruélicos” não seria inadequado. Também poderíamos tratar das atrações musicais contratadas para entreter o público embasbacado. Seria uma espécie de pequeno tratado do que é essencialmente cafona.

Poderíamos tratar das brigas que sempre surgem em tais festas. Mas precisaríamos ser um Gilberto Braga para dar conta do recado.

Por fim, a família T. arruinou-se com a mansão. A festa foi, com o perdão da expressão aparentemente culta, o canto do cisne da riqueza daquelas pessoas. Poderíamos entrar nos detalhes da ruína. Mas precisaríamos ser Balzac para dar conta do recado.

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