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Letra Viva

A festa (conto primeira parte)

Artigo escrito por Nelson Fonseca Neto

22 de Outubro de 2021 às 00:01
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O condomínio vende a imagem de bucolismo, mas há limites para tudo nesta vida. O paraíso deve estar ao alcance dos serviços do motorista de aplicativo ou do entregador da pizzaria. A revolução se instaura caso o sinal da internet seja capenga


Uma cidade média para grande é semelhante, de acordo com alguns pensadores, a um adolescente temperamental. Os estereótipos apontam que o adolescente tem um pé na canoa da infância e um pé na canoa da vida adulta; e que, a partir disso, as oscilações, muitas vezes um tanto perturbadoras, são frequentes. Apontando-se a lente para as cidades, diz-se que as cidades médias têm um pé na canoa da vida provinciana e um pé na vida cosmopolita.

Fizemos a introdução porque a nossa história se dá numa cidade média. Para não ferir sensibilidades, omitiremos seu nome. Basta saber que é uma cidade que caminha firmemente para se tornar grande, com as dores e delícias de tal processo.

A dinâmica do crescimento de uma cidade segue alguns padrões. Um deles é o surgimento, em questão de poucos anos, de condomínios fechados que abrigarão as várias camadas da classe média. Propagandas enaltecem os bosques, os gramados, a tranquilidade, os pássaros, os lagos, as quadras de tênis, as pistas de caminhada, o ar puro. Tudo vale para depreciar a realidade do cimento, do trânsito carregado, do semáforo perigoso, da violência à espreita em cada esquina. Há um quê de ingenuidade nessas peças publicitárias, mas isso não impede que elas sejam eficazes. Os empreendimentos que foram surgindo na cidade da nossa história comprovam a análise.

Estudos urbanísticos esmiuçam os impactos do número crescente de condomínios. A cidade vai se espalhando por regiões até então consideradas inóspitas. Sempre será curioso ouvir a conversa das gerações mais antigas. Não é incomum que essas pessoas olhem para um dado condomínio e digam: “Quando eu era criança, aquilo ali era um pasto”.

Por conseguinte, avenidas precisam ser abertas para a vazão de carros, caminhões e ônibus. O condomínio vende a imagem de bucolismo, mas há limites para tudo nesta vida. O paraíso deve estar ao alcance dos serviços do motorista de aplicativo ou do entregador da pizzaria. A revolução se instaura caso o sinal da internet seja capenga.

Para além dos estudos urbanísticos, há os comportamentais. Abundam as análises sobre como a típica criança de condomínio se relaciona com a cidade. Ficam evidentes as diferenças quando há a comparação com as gerações que passaram a infância e a adolescência num mundo sem condomínios. Nessas horas surgem, inevitáveis, as palavras depreciativas que apontam para os jovens de hoje como pertencentes a um grupo de mimados que mal sabem o que é o mundo longe do computador ou da pequenina tela do celular. Páginas nas redes socias mostram, na visão dos nostálgicos, hoje na casa dos 40 anos, que a vida de outrora era repleta de brincadeiras na rua e de interações sadias. Nostalgia e distorção são palavras próximas. Mas voltemos ao nosso ponto central.

Uma linha dos estudos comportamentais sobre condomínios aponta para um, digamos, isolamento cívico. O nome é pomposo, mas designa algo prosaico. Viver entre muros faz com que a pessoa siga regras que, muitas vezes, não ocorrem nas ruas convencionais. Inevitavelmente, os olhos se voltam para os adolescentes. Comportamentos testemunhados em condomínios seriam impensáveis fora deles. Vandalismo, festas descontroladas e furtos aparecem com frequência nos relatos mais amargurados. Isso se deve, de acordo com as análises mais duras, à tão propalada impunidade. Na prática: o vigilante do condomínio pega mais leve em algumas abordagens por medo de perder o emprego. Não estamos, aqui, cravando afirmações. Nossa função é mostrar algumas das discussões em torno do condomínio. O tema rende horas de conversa, como os leitores sabem muito bem.

Reconhecemos que, até agora, estas linhas pouco têm a ver com aspectos mais convencionais da narrativa. Só aparentemente têm pouco a ver, pois, se a narrativa colocasse as personagens agindo e falando logo de cara, nossa meta de revelar as entranhas da sociedade ficaria comprometida. Isso precisa ser dito, pois não aspiramos apenas ao entretenimento neste espaço. Queremos oferecer algo mais denso.

E agora podemos abordar a história propriamente dita.

(Continua na próxima semana)

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