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Letra Viva

Relato do copo (conto)

Artigo escrito por Nelson Fonseca Neto

15 de Outubro de 2021 às 00:01
Cruzeiro do Sul [email protected]
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Certamente vocês já leram animais contando suas histórias em primeira pessoa. Vira e mexe, aparece um gato narrando suas peripécias desde o nascimento. Não são raros os cachorros que deixam suas opiniões registradas. Vocês se deparam com coisas assim e não estranham.

A coisa muda de figura quando os chamados “objetos inanimados” entram em cena. O “inanimados” da expressão procura reforçar que os objetos são desprovidos de alma. Qualquer pessoa familiarizada com Aristóteles sabe que “alma” vem de “anima”. Os humanos tendem a achar que aquilo que os seus sentidos não capturam não existe. Sorte que sempre surge algum estudioso da microbiologia para mostrar que há um mundo fervilhando num grão de areia.

Digo isso porque sou a prova de que os ditos “objetos inanimados” têm, sim, alma. Tenho sentimentos. Tenho capacidade analítica. Sei juntar “lé” com “cré”.

Isto aqui é um texto, e não um vídeo. Se fosse um vídeo, vocês achariam que se trata de um truque. É fácil, nos dias que correm, fazer umas traquinagens recorrendo a conhecimentos de computação gráfica. Sem contar que a minha formação é mais voltada para a literatura. Sinto que sou mais desenvolto quando lido com a palavra escrita.

Até aqui, escrevi quatro parágrafos e dei poucas informações a meu respeito. Não quero me alongar neste relato. Sou adepto das formas breves. Sou leitor fanático dos grandes contistas. Sem mais delongas, vou falar o que sou. Isso merece um novo parágrafo. É mais arejado. As palavras ficam mais enfáticas.

Sou um copo de requeijão.

Agora que rompi a barreira inicial, posso fazer um gracejo: na verdade, sou um copo de vidro. Meses atrás, eu estava repleto de requeijão. Fiz o tal gracejo porque sou entusiasta da linguagem precisa. Isso muitas vezes é confundido com pedantismo. Tento me policiar. Para fins de fluência do relato, serei um “copo de requeijão”. Mas sou de vidro. Enfim.

Faz meses que não há traço de requeijão em mim. Difícil falar de sorte ou azar na história de um copo de requeijão, mas arrisco mesmo assim: tive sorte. Explicarei.

Eu estava, quatro meses atrás, numa prateleira de supermercado. Melhor dizendo: hipermercado. Vários irmãos (?) ao meu redor. Muitos ostentando a mesma marca que a minha. Outros, não. Era um hipermercado, e não um mercadinho de bairro. Tenho de tomar um cuidado danado com as coisas que pretendo contar. Fico imaginando o leitor forjado pelas narrativas açucaradas da Disney. Certamente esse leitor está pensando que meus irmãos e eu ficávamos olhando desamparados para os frios corredores do hipermercado, chorando a morte da bezerra. Ou, se o leitor é mais efusivo, que ficávamos fazendo raves no setor dos laticínios, aproveitando que os humanos não estavam por perto. Não foi nada disso.

Também não quero que pensem que chorei de emoção quando a mão de um homem com trinta e poucos anos me colocou num carrinho abarrotado de produtos vindos dos mais diversos setores do hipermercado. Era um carrinho que revelava alguém de boas condições financeiras. Aqueles produtos renderiam uma conta salgada. Sou um copo de requeijão, mas não sou burro. Conheço o país onde moro.

Seria um tédio monumental reproduzir aqui a sequência de eventos que me trouxeram até este armário de cozinha que é a minha casa. Basta dizer que estou aqui. Passo boa parte do tempo na escuridão. Sou usado cotidianamente como copo d’água ou de leite. Não sou peça a ser ostentada. Quando tem festa no apartamento, não apareço. Não fico aborrecido ou magoado. Não sou personagem da “Bela e a Fera”. Minha vida recolhida permite que as minhas reflexões ganhem densidade.

Paro por aqui porque basta que um copo de requeijão escreva um relato. Uma coisa de cada vez, já diria a sabedoria popular. Um dia, quem sabe, retorno com meditações que eu considere úteis. Digo “até lá” como despedida? Melhor não. Sou meio temperamental.

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