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Letra Viva

Ele (conto)

Artigo escrito por Nelson Fonseca Neto

24 de Setembro de 2021 às 00:01
Cruzeiro do Sul [email protected]
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Ele passou boa parte da vida tirando sarro de misticismos e solenidades. Ele era conhecido por seu humor ácido. Havia quem achasse interessante levar a vida nessa toada. E havia quem o considerasse alguém a ser evitado.

Se as pessoas gostavam ou não dele não é o aspecto mais importante desta história.

O importante é que ele, até os 30 anos de vida, julgava-se imune a derramamentos emotivos. Ele abominava declarações bombásticas, categóricas, dessas que pedem tambores como acompanhamento (ou violino, se o teor for melodramático). Ele ridicularizava os depoimentos lacrimosos nas redes sociais.

Conversões, iluminações, epifanias, revelações misteriosas: tudo isso, para ele, era sinal da burrice que toma conta da humanidade no século 21. Ele vivia dizendo: estamos na era da ressonância magnética e da leitura do destino na borra de café.

Outro sinal, para ele, de que o mundo andava mal das pernas: muita gente ao seu redor sendo minuciosa em coisas prosaicas. Ou que deveriam ser prosaicas. Exemplos: a relação dos pais das crianças pequenas com a escola dos pimpolhos; a festa de 15 anos da debutante com síndrome de princesa da Disney; o churrasco para os amigos na varanda gourmet; o dia dos namorados com pétalas na cama e morangos lustrosos perto do balde com champagne. Essas coisas.

Consequência: ele fazia questão de ser esculachado na indumentária, na alimentação, nos festejos. Não faltava gente para atormentá-lo com admoestações “construtivas”. Cuidado com a glicemia. Cuidado com o colesterol ruim. Cuidado com o sedentarismo. O refrigerante é um assassino enlatado. Você tem que pensar melhor na pessoa na hora de comprar presente. Tem gente que gosta de uma festa requintada. Essas coisas.

E assim ele levava a vida.

Mas um dia ele, só de birra, decidiu ver como seria sua vida sem a farra diária dos doces. O açúcar era algo fundamental em sua vida. Decidiu dar um tempo só pra ver no que a coisa toda daria. De quando em quando, ele se submetia a esse tipo de teste. Era uma forma de mostrar a sua superioridade moral ao mundo. Uma forma de mostrar que não era escravo das contingências.

Importante dizer que essa história do açúcar ocorreu no período em que as pessoas fingiam saber que existia uma pandemia comendo solta por aí. Para ter o que fazer nas horas vagas, já que o lazer tradicional estava vetado, ele, na semana seguinte ao corte do açúcar, decidiu reduzir a ingestão de carboidratos, carne, fritura, pão.

Perdeu peso, ficou lépido, meio frenético até. Passou a beber dez litros de água por dia. Comprou roupas moderninhas, justinhas. Só que essas mudanças nunca ficam apenas na superfície. A pessoa que passa por elas fica um tanto bitolada. Bitolada, chata, fanática, messiânica, inconveniente: há muitos adjetivos na língua.

Se ele passasse por tudo isso algumas décadas atrás, tudo se resolveria rapidamente. Quando muito, ele seria uma mala no âmbito familiar e no seleto círculo de amigos. Só que a lagarta virou borboleta numa época em que uma multidão acalenta o sonho de ser celebridade no YouTube.

Como é uma lei da vida uma desgraça sempre andar de mãos dadas com outra desgraça, a lagarta virou borboleta numa época em que “histórias de vida” são contadas por coachs. É o pântano da motivação.

Magro, pleno, frenético, ele virou youtuber de vida saudável. O ser humano sempre encontra uma maneira de cavar a própria cova.

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