Letra Viva
Ela (conto)
Artigo escrito por Nelson Fonseca Neto
Ser adolescente é viver na areia movediça. Ela, aos 16 anos, poderia falar a respeito disso por horas. Os adultos nunca estão satisfeitos. Se você lê bastante, surgem os olhares preocupados: é saudável tamanho isolamento do mundo? Se você lê pouco, surge a bronca: o mercado de trabalho é muito competitivo.
Desde muito nova os livros são a sua paixão. Até hoje ela tem guardados os livrinhos que lia com o pai e com a mãe. Todos os livrinhos da infância carregam as marcas da manipulação apaixonada. Páginas rasgadas, cantos mordidos.
Quando aprendeu a ler, tornou-se assídua frequentadora da biblioteca da escola. Em poucas semanas, leu os livros mais interessantes à disposição. Quando percebeu que só tinham restado os livros meio bobos, fez um belo auê com a coordenação e com a direção da escola. Os adultos ficaram impressionados com o seu poder de convencimento. Vencidas as dificuldades iniciais, a biblioteca passou a ser abastecida regularmente com bons livros.
Ela também foi formando sua própria biblioteca. Ela gastava uma parte importante do seu tempo de bobeira vendo fotografias e vídeos de bibliotecas. Perdeu a conta de quantas vezes viu um vídeo curto que mostra o escritor Umberto Eco percorrendo sua labiríntica biblioteca em busca de um exemplar.
Claro que a biblioteca de Umberto Eco é a utopia das utopias. Não ter uma biblioteca monumental nunca foi motivo de tristeza para ela. Um passo de cada vez. Sorte que seus pais nunca torceram o nariz para as compras em livrarias e sebos. Ela tirou a sorte grande.
Aos 16 anos, olha orgulhosa para uma das paredes do seu quarto. Estantes feitas sob medida ocupam o espaço que vai do chão ao teto. Os amigos e amigas ficam encantados com aquilo. As fotos nas redes sociais sempre mostram os livros do quarto.
É evidente que a pessoa fica craque com a prática. Para ela, ler virou algo incorporado ao cotidiano. Impossível imaginar uma vida sem livros. Além disso, ela gosta de escrever. Desnecessário dizer que ela foi ganhando, ao longo desses anos todos, os prêmios dos concursos literários promovidos pela escola. Ela não é arrogante por conta disso. Ainda bem.
Só que nem tudo são flores. Há quem diga que conhecimento traz sofrimento. No ano passado, aos 15 anos, com a pandemia comendo solta, ela sentiu o drama. Percebendo, logo de cara, que o coronavírus não seria brincadeira, devorou livros que trataram da pandemia da gripe espanhola do começo do século 20. Também leu artigos escritos por gente séria. Estava na cara que viriam tempos terríveis. Viu, em 2020, sua escola adotar o modelo do ensino remoto. Passou boa parte do ano passado assistindo às aulas do computador de casa. Foram meses desgastantes. Não via a hora de retomar a vida de antes.
Em 2021, as aulas voltaram ao formato presencial. Ao longo dos primeiros meses, a frequência de alunos oscilou. Semanas com a classe cheia; semanas em que a classe tinha três ou quatro alunos. Mas o pior não foi isso. Duro mesmo foi ter de lidar com pessoas falando os maiores absurdos a respeito de algo tão evidente. Ora, UTI lotada não é questão de ponto de vista. E assim mesmo muita gente ao seu redor agindo como se tudo estivesse uma beleza.
O consolo -- nessa montanha de absurdos, de abobrinhas proferidas de forma arrogante por pessoas sem a menos noção das coisas, de comportamentos homicidas e suicidas, de oba-oba macabro -- era a vacina. Seus avós e seus pais foram vacinados. Ufa. Logo seria ela.
Quando chegou o seu dia, foi cedinho ao ponto de vacinação com a sua mãe, que registrou tudo num vídeo de alguns segundos. Baita felicidade. E um baita susto ao perceber, horas depois, que a vacina não havia sido aplicada. Fez-se o escarcéu de praxe. Ela apareceu em sites de abrangência nacional. Sorte que corrigiram o erro, e no dia seguinte ela tomou a vacina adequadamente.
Agora ela olha pela janela: comprar a nova tradução de “Anna Kariênina” ou as memórias de Gay Talese?