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Letra Viva

A arte da nitidez

Artigo escrito por Nelson Fonseca Neto

10 de Setembro de 2021 às 00:01
Cruzeiro do Sul [email protected]
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Tem gente que encara a arte como o terreno da pureza estética e espiritual. Perfeição na forma e perfeição no conteúdo. O Parnasianismo tentou uma coisa dessas no final do século 19 e no início do século 20. Não é o caso de espinafrar o purismo. Há belíssimos poemas parnasianos circulando por aí.

O problema é outro. O problema é acreditar que a arte está proibida de escapar do território higienizado do belo. Parece que estou exagerando. Talvez você diga: pô, o cara acha que tem parnasiano circulando por aí em 2021?

Não é algo tão escrachado assim, mas já ouvi comentários do tipo: o romance até que é bom, mas tem muita violência. Ou: o conto é bom, mas as personagens são canalhas. Ou ainda: a história é boa, mas o estilo é vulgar, tem muito palavrão.

O que vou escrever aqui tem tudo a ver com as minhas predileções. Digo isso porque pode parecer que eu me ache o árbitro supremo das questões literárias. Trocando em miúdos: vou falar do que me encanta. E o que encanta não precisa ser, necessariamente, perfeitinho. Eu diria que é o contrário. Andemos.

Se você me perguntasse quais os meus livros favoritos, eu faria uma listinha com romances e reuniões de contos. Quase todas as obras trabalhando fortemente com questões sociais. Tolstói. Balzac. Flaubert. Dickens. Eça. Machado de Assis (não seja ingênuo; Machado bate forte no século 19 e início do 20). Graciliano Ramos. John Dos Passos. Norman Mailer. Enfim, daria para encher a coluna com nomes.

Mas o ponto é o seguinte: pode a literatura capturar a complexidade da vida social? Ô se pode! É o que ela, vira e mexe, faz. Isso não quer dizer que tenhamos de concordar na íntegra com o Tolstói. O que não dá pra negar é que o cara consegue equilibrar vários pratos ao mesmo tempo.

Eu fico bem ressabiado quando alguém diz que o leitor literário é avoado e não tem a menor condição de analisar as questões mais relevantes de sua época. E se pensássemos de outra forma? E se os romances nos ajudassem a colocar a bola no chão?

Colocar a bola no chão não é aderir a simplificações perigosas. Colocar a bola no chão é reconhecer que somos o que somos porque a vida tem muitas camadas. Colocar a bola no chão é olhar para o que estamos vivendo e não achar que isso tudo é fenômeno da natureza. Ou que a vida é assim mesmo.

Pensando assim, acho que alguns livros podem ser interessantes caso você queira juntar melhor as peças. São livros interessantes, e não livros perfeitos. O que importa é que eles organizam o mundo. Por esse ângulo, Tolstói é imbatível.

“Anna Kariênina” e “Guerra e paz” são monumentais. Difícil alguém superá-los. “Ressurreição”, o último grande romance de Tolstói, é menos conhecido. Artisticamente falando, ele fica devendo aos romances mais consagrados do autor. O seu aspecto doutrinário é mais evidente. Mas não tem problema. Poucas obras são tão contundentes. O sistema penal russo do final do século 19 é esquadrinhado sem piedade. Ao acompanhar os perrengues dos protagonistas, entendemos, dolorosamente, as relações de causa e efeito. Entendemos que as encrencas maiores são a soma de pequenas e grandes ações e estruturas.

A coisa vai longe. Você pode se aventurar no magistral “A educação sentimental”, de Gustave Flaubert, relato de alta voltagem dos acontecimentos cruciais de 1848. Ou pode encarar “Revolução difícil”, de George Pelecanos, romance policial que soube capturar como poucos o turbilhão de 1968 nos EUA.

Em tempos tão bizarros, a literatura pode ser aquele bote salvador no meio da tormenta.