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Letra Viva

Escrever / Sofrer

Artigo escrito por Nelson Fonseca Neto

03 de Setembro de 2021 às 00:01
Cruzeiro do Sul [email protected]
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Não é a minha praia achar que aluno é coitadinho. Isso não quer dizer que eu seja um sádico. Faço minhas cobranças tentando ser justo. Sou o que sou atualmente porque vivo atormentado por indagações sobre o meu ofício de professor.

Várias dessas indagações passam pela redação na escola. Vou tentar explicar.

Escrever quase sempre é associado a momentos de inspiração. É a maldita herança de uma das vertentes do Romantismo do século 19. Acreditava-se que a escrita era a cristalização de um espírito genial.

E dá-lhe filmes mostrando figuras atormentadas suando no momento da execução da obra genial. Sempre tem uma música cafona acompanhando.

Sou muito mais inclinado a acender minhas velas para João Cabral de Melo Neto e Graciliano Ramos. Ou seja: para um pessoal que sabia que o ato de escrever é trabalho meticuloso. Nada de entidades soprando palavras maravilhosas. É suar feio por conta de uma frase. É ser chato pra caramba na hora de dizimar adjetivos e advérbios gordurosos.

Aí você pode dizer: mas o que isso tem a ver com a redação na escola?

Sei que a redação cobrada nos vestibulares está distante da obra de arte. Sei disso, mas acredito que encarar o texto com o rigor de um Graciliano Ramos pode ser útil. Que fique bem claro: ser rigoroso não é a mesma coisa que ser bitolado. O que mais tem nesta vida é gente transformando redação de vestibular em receita de rabanada. Saudável fugir dessa gente.

Ao longo dessa minha jornada de professor, venho tentando defender meu ponto de vista. Sei que minha abordagem não é das mais amenas. Muito mais agradável dizer que tudo dará certo se o aluno olhar pela janela e contemplar o rouxinol se esgoelando na campina. Só que no dia do vestibular não tem rouxinol. Tem, isso sim, uma paisagem desolada e um calor de enlouquecer.

Você não venha me dizer que trabalhar com redação na escola vai muito além do vestibular. Falo do vestibular para ilustrar o meu argumento. Escrever é fundamental em todas as etapas da vida.

Defendo observar as próprias palavras com lupa. Você tem que ser chato com você mesmo. Não é a defesa do texto cheio de rococós. É o contrário, eu diria. Trabalhar duro para entregar algo cristalino. É uma trabalheira terrível. Ou você acha que os poemas do Manuel Bandeira surgiam entre um gole ou outro de café? Por favor.

Só por conta disso, dá pra sentir um tantinho de pena da molecada. Aí aparecem os vestibulares para complicar ainda mais a parada. Olha só.

Imagine um aluno que está no terceiro ano do ensino médio. No final deste ano, ele fará a prova do Enem, da Fuvest, da Unicamp e da Unesp. Se você estiver por fora, dirá: grande coisa. Não encare a coisa com ironia. O nosso aluno hipotético terá de ser um craque polivalente se quiser uma boa nota em todas as provas de redação. Veja o que as instituições que estão servindo de exemplo cobraram em anos anteriores.

Enem: os caminhos para aprimorar a “Lei seca” no Brasil. Fuvest: a ciência no século 21. Unicamp: roteiro de podcast. Unesp: o legado da escravidão nos dias de hoje. Sentiu o drama? O mesmo carinha tendo de descascar esses abacaxis. Pô, eu trabalho com isso e não tenho receio de reconhecer: se eu fosse prestar o vestibular hoje, suaria sangue para escrever a respeito da “Lei seca” no Brasil. Não estou fazendo graça.

Fico com dó, mas não posso amolecer. Há que se achar a sintonia fina.

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