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Letra Viva

A dignidade do humor

Artigo escrito por Nelson Fonseca Neto

06 de Agosto de 2021 às 00:01
Cruzeiro do Sul [email protected]
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Como fazer o exame de um país com graves problemas sociais? Análises econômicas? Relatórios minuciosos? Gráficos confiáveis? Pesquisas de opinião? Estatísticas bem fundamentadas? Todas essas ferramentas são válidas. Não se muda um país recorrendo a chutes.

Só que a literatura também pode entrar no jogo. Parece bobagem num primeiro momento, pois muita gente acha que a literatura é o terreno da ingenuidade, da fantasia, do sublime, do escapismo. Mas não é bobagem. Muitas vezes é o contrário. A arte também serve para abrir nossos olhos.

É que o bom romancista tem o poder de síntese. Ele vê a vida de forma concentrada. A leitura de um grande romance equivale a um curso de vários anos. Um Balzac conhece bem os fios que movem a sociedade.

Uma das referências atuais no quesito “romance social” é o mexicano Juan Pablo Villalobos. A trilogia formada por “Festa no covil”, “Se vivêssemos em um lugar normal” e “Te vendo um cachorro” é uma análise genial da sociedade mexicana. A primeira parte trata da vida do menino que é filho de um chefão do narcotráfico. A segunda, de um adolescente pobre. A terceira, de um idoso que só quer viver a vida sem amolações. A soma dos livros revela um país esquizofrênico, trágico, horripilante. Quem mora no Brasil não se surpreende.

A técnica de Villalobos é inusitada. Seus romances não seguem as orientações dos clássicos do século 19. Os leitores não encontrarão um narrador frio e distante. É justamente o contrário. Os três livros são narrados em primeira pessoa, e cada narrador-personagem é fiel aos ritmos de sua dicção. Por exemplo, no primeiro livro, os horrores do crime organizado são revelados por um menino que oscila entre a maturidade construída a partir da violência e a ingenuidade dos que são muito novos. Uma mistura dessas rende momentos cômicos e momentos grotescos. É uma aula de como o humor pode ser encontrado nas desgraças.

A tragicomédia é a chave para compreendermos a trilogia de Villalobos. Há quem veja uma coisa dessas como sinal de futilidade. São pessoas que acreditam no esquematismo de que coisas graves só podem ser mostradas a partir de um estilo sério. Trata-se de um erro. O humor mais nobre é justamente o indignado. É ele quem traz os sorrisos amarelos, a vergonha, o constrangimento. É o humor de um Swift, de um Machado de Assis, de um Sterne, de um Rabelais, de um Gógol, de um Voltaire, de um Lima Barreto. Sem eles, muita gente continuaria acreditando que tudo caminha bem.

Mudando de esfera, mas nem tanto assim, nos deparamos com a obra de Elmore Leonard. Se você fizer uma pesquisa rápida na internet, topará com referências tais como “o rei da literatura do crime”, “o mestre da literatura policial”, e por aí vai. Referências erradas? Não que sejam erradas; são superficiais. Não dão conta da riqueza dos romances de Elmore Leonard.

Suas histórias são marcadas pela violência. Isso vale tanto para os romances que mostram os EUA dos anos 90 e 2000, quanto para os que mostram as décadas de 30 e 40. Sem contar os faroestes deliciosos. É que Leonard é dos raros autores que escrevem bem sobre coisas atuais e sobre coisas remotas. Mas a violência e o trânsito fácil pela linha do tempo não explicam adequadamente o brilho de Leonard.

E é aqui que o humor aparece forte. Elmore Leonard é Elmore Leonard porque mistura as coisas mais escabrosas com cenas hilárias. Eu sempre digo que Elmore Leonard é um dos meus autores mais queridos porque ele me diverte, porque ele me ensina a escrever com ginga, porque ele tem um bisturi afiado para abrir questões sociais fundamentais.

Autores como Villalobos e Leonard são grandes equilibristas de pratos. Valorizam a arte de se contar uma boa história. E são o que são porque temperam tudo com humor de primeira. O humor, nunca percam de vista, é libertador.

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