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A redação nos vestibulares

Artigo escrito por Nelson Fonseca Neto

23 de Julho de 2021 às 00:01
Cruzeiro do Sul [email protected]
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Certamente vocês conhecem algumas lendas urbanas. São histórias absurdas que povoam nossa imaginação. Muitas dessas lendas são saborosas. São símbolos culturais que merecem ser estudados. O problema surge quando a lenda se torna crença. Por exemplo, as histórias equivocadas sobre a redação do vestibular atormentam alunos e professores sérios. A encrenca começa com o gênero mais cobrado: a dissertação.

Basta pensar um pouco. Costumamos escrever dissertações sem ser no contexto escolar? Não. Encontramos dissertações em jornais, revistas e sites? Não. Existe um escritor clássico de dissertação na literatura brasileira? Não. Ainda é possível piorar: para quem escrevemos a dissertação? Só sabemos que é para uma entidade misteriosa chamada “corretor”.

Assim, a dissertação é terreno fértil para fórmulas milagreiras. Há de tudo um pouco nesse mafuá: a dissertação só pode ter quatro parágrafos; é obrigatório iniciar os parágrafos de desenvolvimento e de conclusão com uma conjunção; o autor da dissertação não pode expressar sua opinião; gerúndio está proibido; a partícula “que” só pode aparecer cinco vezes; os corretores adoram linguagem parnasiana. É um festival de abobrinhas. O professor que recorre a essas fórmulas não sabe o que está fazendo. Ou sabe, e é estelionatário.

Das abobrinhas mencionadas acima, duas são mais perigosas. São as que dizem que o autor da dissertação não pode expressar sua opinião e que os corretores adoram linguagem parnasiana. Dissertação sem posicionamento não existe. Um bom texto dissertativo entrelaça opinião com fundamentação dessa mesma opinião. É saudável que o ponto de vista seja reforçado, por exemplo, por dados estatísticos. Complica tudo se eu escrever, numa dissertação, que os crimes contra a vida aumentaram dramaticamente no estado de São Paulo e os números mostrarem que não é bem isso o que está acontecendo. Usar suportes externos é importante, mas eles não podem sufocar a opinião. Há que se equilibrar os elementos.

A crença de que os corretores adoram linguagem parnasiana é uma praga. Muita gente dança feio ao seguir essa recomendação. O resultado: um texto ridículo. Como se um casal muito amigo me convidasse para um jantar na casa deles e eu aparecesse trajando um lustroso smoking. Certamente acreditariam que estou com algum distúrbio. Escrever é como escolher roupa. Não nos vestimos da mesma forma em todas as ocasiões; não escrevemos com a mesma pegada em todas as circunstâncias. O drama é que muita gente acha que a dissertação é o ápice da solenidade. Não é. Claro que se pede que o texto seja escrito de acordo com a norma padrão, mas há um abismo entre escrever de acordo com a norma padrão e escrever um texto engessado, gorduroso. Dá para ser simples e formal ao mesmo tempo.

O Enem chegará daqui alguns meses. Sabemos que haverá dissertação na prova de redação. Trata-se de uma prova com um elemento que a diferencia das demais instituições: a necessidade de escrever uma proposta de intervenção. É um tormento para os que farão a prova. Nada que o bom senso e muito treino não resolvam. Importante partir do princípio de que ninguém espera a sugestão que resolverá definitivamente um problema. O candidato deve pensar em propostas que ataquem uma situação a partir de vários ângulos; deve mencionar as instituições que poderiam aliviar um cenário grave. Como dissemos há pouco, o bom senso ajuda. Vocês, por acaso, já viram uma situação complexa ser resolvida imediatamente a partir do toque mágico de uma varinha de condão?

Se houver busca pela simplicidade elegante, sustentada por informações e referências pertinentes, a redação deixará de ser lenda urbana para tornar-se um espaço de importantes posicionamentos.

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