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Letra Viva

Fome de histórias

Artigo escrito por Nelson Fonseca Neto

25 de Junho de 2021 às 00:01
Cruzeiro do Sul [email protected]
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O romance, como gênero literário, teve o seu apogeu na segunda metade do século 19. As histórias longas eram, ao mesmo tempo, entretenimento e fonte de conhecimento. Não foram poucas as polêmicas envolvendo personagens e enredos. Alguns dos romances de Charles Dickens, por exemplo, renderam discussões apaixonadas no parlamento.

As coisas mudaram conforme o século 20 foi avançando. O romance passou a enfrentar a concorrência do rádio, da televisão e do cinema. Não significa que o romance morreu; ele apenas perdeu a supremacia.

Vem ocorrendo algo interessante no século 21: as séries produzidas por HBO e Netflix polemizam e despertam debates calorosos. Ali, encontramos de tudo um pouco: narcotráfico, suicídio, sistema prisional, distopia, conspirações políticas, atuação da máfia, bastidores da realeza inglesa. Não é exagero afirmar que muitas das discussões contemporâneas são encaradas a partir dos pontos de vista que essas séries trazem.

(Alguém poderia dizer que, por aqui, a novela da Globo já vem fazendo isso há muitos anos. Certamente nos lembramos de algumas polêmicas surgidas. Todavia, não com a intensidade das séries de hoje.)

É hora de constatarmos algo elementar: não consumimos histórias apenas por diletantismo. Aprendemos com elas. Somos moldados por elas. Nossas intervenções dependem delas muitas vezes. Não há mal algum nisso. Há séculos a humanidade funciona assim.

É o caso de dizermos que as séries eclipsaram os romances? De forma alguma. Ainda encontramos romances herdeiros do glorioso século 19. Não é fácil reconhecer à primeira vista. Houve, nos últimos 150 anos, o surgimento de técnicas narrativas. Houve também a constatação de que o mundo de hoje, demasiado complexo, muitas vezes não consegue ser abraçado pela narrativa linear e onisciente. Não custa nada lembrar que as questões sociais do século 19 não se replicam no século 21.

Tirando esses aspectos superficiais, o espírito pode ser o mesmo: contar uma história e tocar em temas contemporâneos relevantes. Há excelentes autores fazendo isso neste exato momento. Um deles merece destaque: Ian McEwan. Ler seus romances das últimas décadas é ter contato com questões técnicas refinadas e abordagens sociais das mais lúcidas. De forma espantosa, McEwan transita por diversas épocas: início do século 20; Guerra Fria; anos 80 do século 20; primeiros anos do século 21.

Em 2019, a editora Companhia das Letras publicou “Máquinas como eu”. Trata-se de uma história perturbadora. Imaginem um romance com os seguintes ingredientes: Inglaterra no início dos anos 80; Guerra das Malvinas; Margaret Thatcher; ditadura militar na Argentina; pessoas usando celulares e computadores como se estivessem em 2019; um robô chamado Adão; “machine learning”.

Parece enredo criado por algum lunático. E é a partir desses elementos que Ian McEwan reflete com sensibilidade e bom humor sobre questões humanas eternas e dilemas com os quais teremos de lidar nos próximos anos.

Ao ler um livro desses, cada um terá o seu ponto de destaque. Isso só comprova a riqueza das páginas de McEwan. A literatura ainda tem muito a oferecer. Sempre terá muito a oferecer.

Sejamos famintos por narrativas. Pouco importa o meio de onde elas surgem.

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