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Letra Viva

Trem

Artigo escrito por Nelson Fonseca Neto

14 de Maio de 2021 às 00:01
Cruzeiro do Sul [email protected]
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Conheço muita gente que encara as viagens como algo fundamental. São pessoas que incorporam ao orçamento doméstico passeios de longa distância. Já ouvi amigos dizendo que a vida seria sem graça sem as viagens. Ouço essas coisas respeitosamente. Mas preciso dizer que sou imune à febre de conhecer lugares.

Ponham boa parte na conta da preguiça. É que as viagens apreciadas pelos meus conhecidos envolvem aeroportos, filas e planejamento militar de hospedagem, aluguel de carros e outras mumunhas. Não exagero ao dizer que, para mim, são operações de alta complexidade. Eu já me dou por satisfeito ao lembrar o dia certo das contas e efetuar seu pagamento sem sustos.

Eu bem que poderia bancar o pedante neste momento e dizer que abomino as viagens tradicionais porque leio bastante e prefiro as viagens literárias. Seria conveniente dizer que conheço a Rússia conduzido pelas mãos de Tolstói. A França, pelas mãos de Flaubert. A Inglaterra, pelas mãos de Dickens. E seria um desfilar de constatações livrescas meio bestas.

É evidente que a leitura, dependendo do caso, é uma forma de viagem. O leitor conhece novas terras, novas pessoas, novas situações. Ótimo, maravilhoso. Pode ser que alguém use com sinceridade o argumento literário para abrir mão da viagem tradicional. Eu não farei isso. Vou repetir: meu caso tem muito mais a ver com preguiça e com inépcia.

Boa parte é culpa da preguiça e da inépcia, mas não tudo. O tipo de transporte conta. Parece besteira, mas isso tem um peso enorme.

De vez em quando, constato que nasci na época errada e no país errado. Na época errada: transporte ferroviário sendo muito mais forte para carga pesada. No país errado: Brasil, país que preferiu o asfalto. Dizendo de uma forma mais direta: meu negócio é trem.

Fico maravilhado ao ler relatos de viagens ferroviárias. Nunca canso de reler as páginas ambientadas na linha entre Moscou e São Petersburgo no romance “Anna Kariênina”. São cenas muito vívidas. Cenas de trem sempre serão vívidas para mim. Nos momentos de imaginação mais solta, vislumbro uma sociedade pautada pelo trem. Já imaginaram a maravilha que seria?

Viagens curtas e viagens longas. Sorocaba -- São Paulo: trem. Sorocaba -- Porto Alegre: trem. E não precisaria ser, necessariamente, trem japonês rápido. Eu me contentaria com velocidades clássicas. Sei lá, viagem de trem tem que ser meio arrastada mesmo.

Eu me vejo numa cabine olhando a paisagem desfilando na justa velocidade. Quando digo “cabine”, imagino um quarto ambulante. Boa cama, banheiro, mesinha, cadeira. Quando a fome bater, vou ao vagão restaurante. Ali, encontro comida boa, farta e sem frescura. Volto à cabine e tiro um cochilo embalado pelo barulho dos trilhos.

Reconheço que o meu trem é utópico pra caramba. Quem pegaria um trem lento neste mundo de gente frenética? Quem ficaria olhando um tempão a paisagem enquanto pensa na morte da bezerra? Quem mergulharia na leitura de um romance num quartinho trepidante? Não haveria empresa lúcida para explorar esse modo de deslocamento.

Se o trem ideal não aparece, fico aqui com o meu sedentarismo. Vejo as propagandas de pacotes de viagem no Youtube e canso logo nos primeiros segundos. Se a realidade é de correria, meu refúgio é o devaneio antes do sono.

E tem a leitura de livros como “O grande bazar ferroviário”, de Paul Theroux. Trata-se de um clássico da literatura de viagem. Também é a mais bela declaração de amor ao mundo dos trens. E viva o anacronismo!

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