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A fresta no escafandro

Artigo escrito por Nelson Fonseca Neto

07 de Maio de 2021 às 00:01
Cruzeiro do Sul [email protected]
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Houve uma época em que eu acompanhava com fervor os lançamentos do mercado editorial. Não estou falando de um tempo muito remoto. Coisa de poucos anos atrás, eu vivia entrando nos sites das editoras para saber das novidades. A coisa toda esfriou de uns anos para cá. Há duas possíveis explicações para isso.

A primeira delas: o fato de não mais acompanhar fervorosamente os lançamentos editoriais tem a ver com uma mudança mais profunda na minha vida. Seria algo que se encaixaria num cenário maior, a saber: a perda de interesse nas novidades em geral.

Leio o que acabei de escrever e temo gerar interpretações equivocadas. Você lê que venho perdendo interesse nas novidades em geral e imagina que estou sorumbático. Seria natural se você encarasse as coisas desse modo. Mas preciso dizer que não é um jeito correto de ver o que ocorre. Não estou triste. Eu simplesmente passei a ver o tempo como algo realmente precioso.

Algumas semanas atrás, aqui mesmo, eu disse que entrei num escafandro metafórico e que passei a ter muito pouco contato com as notícias. Continuo no meu escafandro. Nunca mais li nada nas redes sociais. Posso garantir que tem feito um bem danado. Sempre importante lembrar: tem feito um bem danado a mim. Pode ser que seja diferente com você. E é bom que seja assim.

Meu isolamento do mundo das notícias e das redes sociais tem rendido frutos palpáveis e não tão palpáveis assim. Um fruto palpável: mais tempo disponível para as coisas mais interessantes. Um fruto não tão palpável assim: tenho visto a vida com mais doçura.

É que ter contato com muitas vozes estava me irritando profundamente. Eu gastava minutos preciosos lidando com opiniões estapafúrdias a respeito de toda ordem de assunto. De pandemia a BBB. De futebol a séries Netflix. E eu insistia no martírio. Há um nome para o que estava acontecendo comigo: masoquismo. Infelizmente, muitas pessoas queridas eram pródigas na hora de postar asneiras nas redes sociais. Se as coisas continuassem naquele ritmo, protagonizaríamos brigas virtuais constrangedoras. Como sou preguiçoso, achei melhor evitar os desgastes. Hoje, não vejo as atrocidades postadas, e tudo fica pintado com cores mais suaves. Fuga? Sim, e deliberada.

Consequência disso, sentida mais diretamente pela Patrícia: pareço aquelas pessoas que passaram longo tempo congeladas e que ficam estupefatas quando alguém conta o que tinha acontecido, por exemplo, dois dias antes. Aqui em casa, na hora do jantar, a Patrícia menciona algo importante, e eu respondo: “sério?”. Coitada da Patrícia.

Bom, se estou tocando a vida deste modo, natural que diminua minha fome por novidades editoriais. Por isso mencionei que talvez isso seja uma peça pertencente a algo maior. Pode ser, claro.

Mas também pode ser culpa das editoras que eu acompanhava com mais entusiasmo. Vai ver que é ranhetice minha, mas acho que caiu o nível de muitos dos catálogos. Não faz tanto tempo assim, pensando numa editora grande, eu cobiçava, nos lançamentos de um singelo mês, uns dez títulos. Hoje, muitos meses passam em branco. Correndo o risco de simplificar demais: algumas editoras diminuíram o ritmo de lançamentos de textos literários e aumentaram a carga de títulos sintonizados com os debates atuais mais quentes. Longe de mim defender que os títulos polêmicos sejam desnecessários. São importantes, devem ser publicados. Alimentam bem os debates. Podem servir de antídoto para a tosqueira das redes sociais. Só acho que poderia haver um equilíbrio maior com a literatura publicada anteriormente.

Estou no escafandro, mas não virei burro.

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