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As camadas de um gênio

Artigo escrito por Nelson Fonseca Neto

23 de Abril de 2021 às 00:01
Cruzeiro do Sul [email protected]
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Nelson Fonseca Neto - [email protected]

E lá vou eu falar de novo sobre o Andrea Camilleri, escritor italiano de narrativas policiais e uma das paixões literárias aqui de casa. Digo “aqui de casa” porque a Patrícia conhece a fundo as peripécias do comissário Montalbano. E esperamos que o João Pedro mantenha a chama da devoção acesa.

Não se assustem. Vocês não lerão um texto de análise literária. Na verdade, o Camilleri vai servir muito mais de gatilho para umas coisas que quero dizer. Mas eu preciso dar aquela contextualizada de praxe. Tenham paciência.

Os contos e romances policiais de Camilleri trabalham a partir da repetição do pano de fundo. Montalbano é comissário de polícia numa cidadezinha siciliana. Namora Livia, que mora em outra cidade. Seus auxiliares são figuraças. Montalbano e sua trupe precisam lidar com crimes de todos os tipos. Os pesados e os cômicos. Os passionais e os promovidos pela máfia. Corrupção fria e assassinatos cometidos no calor da hora. O leitor sempre encontrará humor e gastronomia de primeira. Acreditem: o resultado é um milagre. Camilleri vicia.

Pensei bastante no Camilleri nos últimos dias. E pensei por vários motivos. Já aconteceu com vocês? Essa história de uma figura despertar pensamentos bem diferentes entre si? Vou tentar explicar o que aconteceu comigo.

Já passei faz bastante tempo da fase de responder à pergunta “o que você quer ser quando crescer?” Estou contente com a vida que levo. Digamos que pensei no Camilleri como complemento neste quesito. É que gastei quase duas horas vendo, no YouTube, algumas entrevistas que ele deu poucos anos atrás. O cenário era a biblioteca da casa dele. Vejo um senhorzinho de voz professoral falando a respeito de Simenon. Baita aula sobre as engrenagens do romance policial. Pensei: quero envelhecer como o Camilleri. Não é pouca coisa chegar à casa dos 90 com a cabeça fresca e com o humor afiado.

Deixei para explicar o lance do Camilleri como complemento neste parágrafo. Não quero encavalar as coisas. O Camilleri como complemento funciona assim: quero continuar professor, mas não seria ruim se eu tivesse talento para escrever histórias policiais como as do Camilleri. Uma atividade não excluiria a outra. E nem é uma questão financeira. É mais pelo desafio intelectual. Acho que faz bem para a mente bolar histórias engenhosas e engraçadas.

Isso me leva para outro pensamento a respeito de Camilleri. Agora vou falar de algo mais literário. Não serei árido. Não sei se já aconteceu com vocês, mas comigo acontece de vez em quando: perceber quando um autor teve genuíno prazer ao escrever algo. Não ter prazer na hora de escrever não significa que o resultado será necessariamente ruim. Por exemplo, não consigo imaginar Graciliano Ramos deleitando-se com a elaboração de “São Bernardo”, mas consigo imaginar Nelson Rodrigues vibrando na hora de escrever “Asfalto Selvagem”.

Bom, se tem um autor que deixa evidente o prazer da escrita é o Camilleri. Sujeito de sorte. Uma das grandes sortes nesta vida. Ou não? Prazer autêntico na hora de exercer um ofício. Pensem em como são raras as pessoas atingidas por essa dádiva. Paro por aqui neste quesito. Não quero descambar para um papo de coach.

Outro pensamento motivado por Camilleri: a narrativa policial como lente para entender a sociedade. Já cansei de dizer aqui que a boa narrativa policial é entretenimento e bisturi ao mesmo tempo. Camilleri mostra as delícias e as misérias italianas. Poucos autores mostram tão bem os mecanismos do crime organizado. Fico imaginando esse jeitão de ver as coisas aplicadas ao Brasil.

Material não falta, infelizmente. Torçamos para um Camilleri aparecer por estas bandas.