Carolina Maria de Jesus, a ‘escritora favelada’, terá obra completa publicada
Obra de Carolina Maria de Jesus mostra seu cotidiano e as dificuldades em uma comunidade. Crédito da foto: Divulgação
Sessenta anos depois da publicação original de Quarto de Despejo -- Diário de uma Favelada (1960, pela Francisco Alves), a obra de Carolina Maria de Jesus (1914-1977) é, enfim, contemplada por uma grande editora brasileira (a Companhia das Letras), cujo projeto -- finalmente -- prevê o trabalho, até então inédito no mercado editorial, de mergulhar nos textos da escritora e publicar sua obra completa.
Tratada por uma parte considerável dos pares escritores, pela cobertura midiática e pelos leitores como uma autora exótica, cuja contribuição se resumia à condição de favelada, Carolina deixou em manuscritos centenas de textos, que constroem um conjunto singular de poemas, contos, romances, peças de teatro, letras de músicas, provérbios e entradas de diários, antecipando em décadas o surgimento de vozes literárias diversas e de diferentes origens do tecido social brasileiro.
O trabalho será coordenado por um conselho editorial, liderado por Vera Eunice de Jesus, filha de Carolina. “O melhor da Carolina vai aparecer agora”, garante Vera, por telefone, entusiasmada com o trabalho que vem pela frente. “Eu a tenho como minha mãe; mas, como escritora, me pergunto: quem foi essa mulher? Ela teve um ano e meio de estudo, nunca mais entrou numa escola. Mas falava e até brigava com os filhos em versos. Eu andava muito com minha mãe pela cidade e, muitas vezes, ela pegava um papel qualquer, tirava um lápis do bolso e escrevia um poema.”
O livro Quarto de Despejo tal como existe (publicado há décadas pela editora Ática) não faz parte do projeto por decisão de Vera. A edição clássica, feita pelo jornalista Audálio Dantas, por quem Carolina nutriu sentimentos contraditórios de gratidão e angústia durante toda a vida, cortou partes do texto original que o conselho editorial quer revelar agora ao público. É o mesmo caso de Casa de Alvenaria (o primeiro a ser publicado, ainda sem data definida) e de Diário de Bitita, lançado na França em 1977 e depois retraduzido para o português - o original desse livro hoje pertence ao Instituto Moreira Salles, parceiro no projeto de divulgação da obra de Carolina. Outros dois diários também serão publicados, um de viagens e outro “do sítio”.
Festa literária
De maio a agosto a Flup 2020 realizou um ciclo de debates totalmente virtual sobre a escritora. Crédito da foto: Divulgação
A Festa Literária das Periferias (Flup) realiza em 2020 um processo formativo sobre a obra de Carolina Maria de Jesus, focado em mulheres negras. Com o processo atravessado pela pandemia, as oficinas se tornaram online e receberam cerca de 500 inscrições de 87 cidades do Brasil, de países africanos e da França. A ideia, segundo a produção, é propor reescrituras de Quarto de Despejo no aniversário de 60 anos do livro, e publicar um volume com a produção resultante, selecionada por uma banca de jurados.
Acontece que em uma parceria com o Ministério Público do Trabalho, a Flup decidiu estender o processo formativo para cooperativas de catadoras de material reciclável, e um grupo de 20 mulheres foi escolhido para compor uma turma. Desde abril, elas participam das palestras e trocam ideias em encontros virtuais, com orientação do escritor Eduardo Coelho. A ideia é, ao fim do processo, publicar um livro com as histórias delas, escritas por elas mesmas.
História serve de inspiração para catadoras
Viviane Conceição de Souza, 42 anos, foi uma das centenas de participantes das oficinas virtuais realizadas pela Festa Literária das Periferias (Flup) 2020 e participa do projeto para a elaboração do livro. Quando ela aceitou a proposta de se juntar às mais de 500 mulheres que se inscreveram no processo de formação da Flup, ela ainda não conhecia a obra de Carolina Maria de Jesus, e o que veio a seguir foi uma revelação. “Fiquei apaixonada”, conta. “Quando comecei a ler, percebi que era uma mulher incrível. Realmente, por ter vivido tanto tempo atrás e relatado essas situações. Com todos os problemas que ela tinha, com tantas dificuldades, a missão de caçar o pão do dia ela, ainda assim, tinha toda uma esperança de que algo ia acontecer. Ela desenhava e escrevia no dia a dia, sempre visando que não ia ser só aquilo. Pelo menos para os filhos dela foi mesmo diferente.”
O livro de Carolina “Quarto de Despejo -- Diário de uma Favelada” foi publicado em 1960. Crédito da foto: Divulgação
A visão de mundo de Carolina não foi o único aspecto com o qual ela se identificou. Catadora há 11 anos, Viviane percebeu nos relatos da escritora a mesma vontade de “querer ir além” que marcou sua vida, desde cedo. “Sempre tive a vontade de procurar estar em outro lugar, não necessariamente físico, mas um lugar melhor na vida.”
Passar a frequentar as aulas virtuais foi um alívio no contexto confuso da pandemia. Um método de escrita já vai se desenhando: Viviane escreve à caneta, rabisca, depois passa para o computador. “Várias coisas que Carolina começou lá atrás hoje já fazemos diferente, no mundo da catação. Ela vivia num tempo mais difícil, sofria mais preconceito, mais machismo, os filhos sofriam mais: hoje não precisamos pegar brinquedo do lixo, com o dinheiro da catação. Conseguimos melhorar. Fico muito emocionada “
Multiplicação
Aos 39 anos, a catadora de material reciclável Claudia da Silva hoje enxerga na obra de Carolina Maria de Jesus novos olhares para situações com as quais ela se acostumou. Nascida em Rio das Pedras e criada em Ourinhos, no interior de São Paulo, Claudinha, como é conhecida, vem de uma família envolvida com a catação há mais de uma geração. Ela terminou o colegial e hoje está há 18 anos no movimento de catadores, na cooperativa Recicla Ourinhos.
Trabalho, renda e família: os temas que fazem parte do cotidiano de Claudinha são abordados na forma literária de Carolina, e a catadora, postulante a escritora via oficina da Flup, enxerga nos textos da colega mais antiga “simplicidade e riqueza”.
Nas páginas de Carolina, Claudia diz encontrar ainda uma espécie de guia por questões fundamentais do mundo, mesmo atual -- sua vontade nos próximos meses é montar grupos e oficinas em outros locais e repassar os conhecimentos adquiridos adiante. “É interessante que eu vejo a história dela e sei que muitas catadoras fazem isso: escrevem relatos, diários. Eu imagino que Carolina soubesse que deixava algo para frente. É como colocar uma mensagem na garrafa.” (Estadão Conteúdo)
Galeria
Confira a galeria de fotos