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Editorial

Casa de ferreiro, espeto de pau

Só que as pedras atiradas pelos franceses estão agora se voltando contra eles

22 de Janeiro de 2023 às 00:01
Cruzeiro do Sul [email protected]
França vence a Polônia por 3 a 1 e avança para as quartas de final da Copa do Mundo
França vence a Polônia por 3 a 1 e avança para as quartas de final da Copa do Mundo (Crédito: AFP)

A França foi um dos países que mais criticou a Fifa pela confirmação da Copa do Mundo de 2022 no Catar. Boa parte dos políticos achava inadmissível que um país com tantos problemas pudesse sediar um evento dessa magnitude.

Entre as principais questões levantadas pelos franceses estavam a morte de operários durante a construção dos estádios, o desrespeito às mulheres, a falta de cuidados com a preservação da natureza e os impactos climáticos gerado pelas novas instalações e a perseguição aos homossexuais.

Políticos franceses, inclusive o presidente Emanuel Macron, propuseram uma série de medidas para boicotar os jogos. Telões foram proibidos em praça pública e os torcedores foram desaconselhados a se reunir para assistir os jogos.

Na primeira fase da Copa, só torcedores de outros países se aventuram a comemorar as vitórias nas avenidas parisienses. Diante do vácuo deixado pelas torcidas locais, foram os marroquinos que acabaram fazendo a festa, para desespero das brigadas policiais.

Só que aos poucos a França foi passando de fase e acabou na final. E não há boicote no mundo capaz de segurar o coração de um fanático por futebol. Dia a dia as reuniões foram se avolumando. O próprio Macron se deslocou a Doha para assistir algumas partidas, o que lhe custou uma série de críticas.

O problema é que a Copa do Catar passou. E o próximo grande evento do esporte mundial vai ser disputado em Paris. Os Jogos Olímpicos de 2024 serão sediados pela “Cidade Luz”.

Só que as pedras atiradas pelos franceses estão agora se voltando contra eles. Várias obras que estão sendo feitas na capital têm em seu quadro de trabalhadores imigrantes ilegais, sem registro e sem proteção social. A maioria deles vem das ex-colônias africanas.

A presença dessa mão de obra ilegal tornou-se motivo de tensão política e social. Um dos casos mais famosos, denunciados pela imprensa, é o do malinês Gaye Sarambounou. Ele foi flagrado trabalhando com documentos falsos na obra do centro aquático de Marville.

Durante três meses, Sarambounou trabalhou até 13 horas por dia. O salário diário é de 80 euros, 40 euros se uma emergência o obrigar a sair mais cedo. Obviamente, “horas extras nunca foram pagas”, relatou o trabalhador. Que completou: “aceitei porque sei da minha situação. Se você não tem documentos, faz tudo o que é difícil, não tem escolha”.

Diante dessa situação, os franceses e muitos estrangeiros começaram a questionar o governo da falta de controle sobre as obras no próprio país. Quantos casos como o de Sarambounou poderiam existir sem que ninguém soubesse? Essa era a principal pergunta. Aos poucos mais e mais casos começaram a ser denunciados.

A situação foi ficando tão grave que o Ministério Público entrou no jogo e começou a exigir uma fiscalização cada vez mais frequente. Acabar com o trabalho clandestino se tornou uma verdadeira obsessão. Só que o problema é muito maior do que se quer reconhecer.

Nos canteiros de obras reina o silêncio sobre o tema: “Todo mundo sabe, ninguém fala”, dizem. As autoridades desconversam, porque o assunto é espinhoso. “Há uma grande hipocrisia por parte das autoridades políticas”, resume Bernard Thibault, copresidente do Comitê de Monitoramento da Carta Social de Paris 2024.

Segundo o ex-secretário-geral do sindicato CGT, “podemos supor que há outros” imigrantes ilegais nos canteiros de obras que as “aparências” gostariam que fossem regularizados.

O que se sabe, com certeza, é que a contratação de imigrantes clandestinos se espalha pela Europa. Não é um problema só da França. Na Itália, por exemplo, as mortes na construção civil têm crescido assustadoramente.

Muitos casos são escondidos por empreiteiros inescrupulosos que só querem maximizar o lucro contratando gente desesperada e despreparada para o serviço.

Criticar os que estão além-mar é fácil, difícil é reconhecer os próprios erros, feitos dentro de casa, e para os quais não temos uma solução. Os franceses apontaram toda a sua artilharia para o Catar e agora estão recebendo o troco.