Editorial
As lições do carvalho e do caniço
É preciso pensar mais longe e tomar medidas que minimizem os problemas a longo prazo e de forma definitiva
No século 17, o escritor francês Jean de La Fontaine escreveu uma fábula em que um frondoso carvalho e um mísero caniço discutiam a sua importância perante a natureza. A pequena planta defendia o argumento de que todos somos iguais, cada um exercendo seu papel, e que não se deve afrontar as leis superiores. Já o carvalho, enorme, forte e robusto, acreditava ter condições sim de se impor e fazer valer a sua vontade.
Na fábula, que atravessou gerações, dizia o robusto carvalho ao diminuto caniço:
“Sou grande, sou forte;
És débil e deves, com justos motivos,
Queixar-te da sorte!
Inclinas-te ao peso da frágil carriça;
E a leve bafagem.
Que enruga das águas a linha tranquila
Te averga a folhagem.
Mas minha cimeira tufões assoberba.
Com serras entesta;
Do sol aos fulgores barreiras opondo,
Domina a floresta.
Qual rija lufada, do zéfiro o sopro,
Te soa aos ouvidos,
E a mim se afiguram suaves favônios
Do Norte os bramidos.
Se desta ramagem, que ensombra os contornos,
A abrigo nasceras,
Amparo eu te fora de suis e procelas,
E menos sofreras.
Mas tens como berço brejais e alagados,
Que o vento devasta.
Confesso que sobram razões de acusares
A sorte madrasta”.
Responde o caniço: “Das almas sensíveis
É ter compaixão;
Mas crede que os ventos, não menos que os fracos,
Minazes vos são.
Eu vergo e não quebro. Da luta com o vento
Fazeis grande alarde:
Julgais que heis de sempre zombar das borrascas?
Até ver não é tarde.”
Mal isto dissera, dispara do fundo
Dum céu carregado
O mais formidável dos filhos que o Norte
No seio há gerado.
Ereto o carvalho, faz frente à refrega;
E o frágil arbusto
Vergando, flexível — do vento aos arrancos
Resiste, sem custo.
Mas logo a nortada, dobrando de força,
Por terra lançava
O roble que às nuvens se erguia e as raízes
No chão profundava.
Passada a tempestade, o caniço havia resistido bravamente à força da natureza. Já o carvalho tombara e perdera a vida. Jazia agora em solo encharcado, sem mais histórias para contar, nem bravatas para se gabar.
Essa fábula pode se adaptar bem aos dias de hoje. Cidades inteiras se preocupam em se transformar em carvalhos, sem se lembrar dos ensinamentos do caniço. Não se pode enfrentar, de peito aberto, as forças da natureza. É necessária a devida adaptação para civilização e planeta consigam conviver em harmonia.
Exemplo disso ocorreu na última sexta-feira. Em segundos o céu escureceu, o vento chegou forte e um temporal provocou um caos em Sorocaba e em boa parte da região. Árvores despencaram sobre a fiação elétrica deixando milhares sem energia. Muros ruíram, ruas ficaram alagadas e o prejuízo não escolheu classe social. Todos foram igualmente afetados. Esse fenômeno mostra a necessidade urgente de adaptarmos a nossa estrutura urbana para conviver melhor com a natureza. O progresso deve respeitar o relevo, as bacias hidrográficas, a composição do solo. Desrespeitar esses limites é flertar com o desastre.
A chuva forte não tem sido novidade nos últimos meses. O mês de outubro, por exemplo, foi o mais chuvoso da história de Sorocaba segundo o Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet), desde o início das medições na cidade, em janeiro 1993.
De acordo com os dados do Inmet, a cidade registrou o acumulado de 284,3 milímetros em 31 dias do mês. O recorde anterior era de 2011, quando o mesmo período registrou o acumulado de 201,6 milímetros.
Essa situação não ocorreu só em Sorocaba. A capital paulista também enfrentou o outubro mais chuvoso da história. No total, foram 356 milímetros de chuva,180% acima da média histórica de 1991 a 2020, que é de 127,2 mm.
Diante de quadros assim, fica difícil apostar só no planejamento e nos alertas das defesas civis para resolver o problema. É preciso pensar mais longe e tomar medidas que minimizem os problemas a longo prazo e de forma definitiva.
Temos que deixar de pensar como o carvalho, que acreditava poder vencer a natureza com seu tamanho, soberba e teimosia, e seguir as lições do caniço que, sabedor das suas fragilidades, se utiliza sempre da esperteza, da resiliência e da flexibilidade para se manter vivo e em pé. Só assim teremos que enfrentar um número cada vez menor de problemas diante das demonstrações de força da natureza.